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LIBERDADE E DETERMINAÇÃO DOS ATOS HUMANOS

Paramentos Litúrgicos

Toda filosofia que coloca a vontade antes da inteligência ofende a natureza e o senso comum.

Por fim, é necessário lembrar as definições do concílio de Trento: "O pecado não vem de Deus, pois são os próprios homens que tornam más as suas vias"

S. Paulo: "Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum" [17]. Para os que amam a Deus, todas as coisas concorrem para o bem, para este bem verdadeiro que é a salvação.

Por fim, é necessário lembrar as definições do concílio de Trento: "O pecado não vem de Deus, pois são os próprios homens que tornam más as suas vias"
[23].

LIBERDADE E DETERMINAÇÃO DOS ATOS HUMANOS

TEXTOS COMPROBATÓRIOS DE SANTO TOMÁS DE AQUINO

Suma Teológica, I, q. 23, a. 1:

Os homens são ou não são predestinados [= recebem a possibilidade de chegar à vida eterna] por Deus?

Objeções pelas quais parece que os homens não são predestinados por Deus:

1. Diz o Damasceno no II livro [1]: "deve-se ter em mente que Deus tudo conhece de antemão, mas que não predetermina tudo.

Pois de antemão conhece o que existe em nós e não o predetermina. Mas os méritos e deméritos humanos

estão em nós enquanto, por livre arbítrio, somos donos de nossos atos. Portanto, o que pertence ao mérito ou demérito não está predestinado por Deus. Assim, desaparece a predestinação dos homens.

2. Além disso, como foi dito (q. 22 a. 1 e 2), todas as criaturas estão ordenadas a seus fins pela providência divina. Mas das outras criaturas não se diz que estão predestinadas por Deus. Logo tampouco deve-se dizê-lo dos homens.

3. Mais ainda. Os anjos, como os homens, são capazes de ser felizes. Mas aos anjos, aparentemente, não corresponde o serem predestinados, pois neles nunca houve miséria. E Agostinho afirmou [2] que a predestinação é o propósito de ter misericórdia. Logo os homens não são predestinados.

4. Por último. Os benefícios que Deus dá aos homens são dados a conhecer aos santos pelo Espírito Santo, como nos diz o Apóstolo em 1 Cor 2,12: Não recebemos o espírito deste mundo, mas o Espírito que vem de Deus para que saibamos aquilo que Deus nos concede. Portanto, se os homens fossem predestinados por Deus, como a predestinação é um dom, a predestinação seria conhecida pelos predestinados. E isto é falso.

Pelo contrário, está escrito em Rm 8,30: Aos que predestinou, a estes chamou.

Solução. É necessário afirmar: É apropriado Deus predestinar [DESEJAR QUE TODOS SEJAM SALVOS, isto é, TRANSMISSÃO À CRIATURA RACIONAL DO FIM DA VIDA ETERNA] os homens.

Pois, como foi demonstrado (q. 22, a. 2), tudo está submetido à providência divina. E como também foi dito (q. 22, a. 1), corresponde à providência ordenar as coisas ao seu fim. E o fim para o qual são ordenadas as coisas por Deus é duplo. Um, que ultrapassa a capacidade e proporção da natureza criada, e este fim é a vida eterna, que consiste em ver a Deus, algo que ultrapassa a natureza de qualquer criatura, como foi provado (q. 12, a. 4).

O outro fim é proporcional à natureza criada, o qual pode ser alcançado com a capacidade de sua própria natureza. E aquilo ao qual não pode chegar com a capacidade de sua própria natureza, é necessário que lhe seja outorgado por outro, como a flecha necessita do arqueiro para chegar ao alvo. Por isso, e falando com propriedade, a criatura racional, capaz de chegar à vida eterna, chega a ela como se esta lhe fosse comunicada por Deus. A razão de tal comunicação preexiste em Deus, como também nele preexiste a razão da ordem do todo ao fim, que é a providência, como já afirmamos (q. 22, a. 1). A razão de algo que se vai fazer existe na mente do que vai fazer, é uma determinada preexistência do que se vai fazer que existe nele. Por isto, a razão da mencionada transmissão à criatura racional do fim da vida eterna se chama predestinação; pois destinar é enviar. Fica claro que a predestinação, com respeito ao seu objetivo, faz parte da providência.

Respostas às objeções:

1. À primeira deve-se dizer: O Damasceno chama predeterminação à imposição de necessidade; como sucede com as coisas naturais, que estão predeterminadas a algo fixo. Este sentido se apoia no que disse: Pois não quer a malícia e nem força a virtude. Desta forma, não nega a predestinação.

2. À segunda deve-se dizer: As criaturas irracionais não possuem capacidade para aquele fim que ultrapassa a capacidade da natureza humana. Por isso não se diz propriamente que estão predestinadas, embora se abuse às vezes da palavra predestinação para falar de qualquer outro tipo de fim.

3. À terceira deve-se dizer: Aos anjos corresponde serem predestinados como os homens, embora nunca tenha havido miséria entre eles. Pois o movimento não se especifica pelo ponto de partida, mas pelo de chegada. Exemplo: Não importa que algo branco, antes de ser branco, tenha sido preto, amarelo ou vermelho. De modo semelhante, para ser predestinado não importa que alguém seja predestinado à vida eterna saindo de um estado de miséria ou não.

Também, pode-se dizer que conceder um bem superior ao merecido é algo que pertence à misericórdia, como já afirmamos (q. 21, a. 3 ad 2; a. 4).

4. À quarta deve-se dizer: Mesmo que por um privilégio especial seja revelada a alguns a sua predestinação, não é conveniente que a predestinação seja revelada a todos, porque os não predestinados se desesperariam, e a segurança de ser predestinado poderia suscitar negligência nos predestinados.

[1] De Fide Orth. c.30: MG 94,972.
[2]. Cf. De diversis quaest. ad Simplic. 1.1 q.2: ML 40,115; Contra duas epist. Pelag. l.2 c.9: ML 44,586; De Praedest. Sanct. c.3: ML 44,965; c.6: ML 44,969; c.17: ML 44,985.

Toda filosofia que coloca a vontade antes da inteligência ofende a natureza e o senso comum.

Por fim, é necessário lembrar as definições do concílio de Trento: "O pecado não vem de Deus, pois são os próprios homens que tornam más as suas vias"

S. Paulo: "Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum" [17]. Para os que amam a Deus, todas as coisas concorrem para o bem, para este bem verdadeiro que é a salvação.

Por fim, é necessário lembrar as definições do concílio de Trento: "O pecado não vem de Deus, pois são os próprios homens que tornam más as suas vias"

Suma Teológica, I, q. 23, a. 3:

DEUS CONDENA OU NÃO ALGUM HOMEM?

Objeções pelas quais parece que Deus não condena nenhum homem:

1. Ninguém condena aquele que ama. Mas Deus ama todos os homens, como é afirmado em Sb 11,25: Amas tudo o que existe, e não odeias nada do que fizeste. Logo Deus não condena nenhum homem.

2. Além disso, se Deus condena algum homem é necessário que a condenação seja para os condenados o que a predestinação é para os predestinados. Mas a predestinação é causa de salvação para os predestinados. Logo a condenação será a causa da perdição dos condenados. E isto é falso, pois se diz em Os 13,9: Israel, tu mesmo te perdes; de mim vem o teu auxílio. Logo Deus não condena ninguém.

3. Além disso, não se pode imputar o que não pode ser evitado. Mas se Deus condena a alguém, não pode evitar que pereça, pois se diz em Ecl 7,10: Contempla as obras de Deus, porque ninguém pode corrigir o que Ele desprezou. Logo não há como imputar aos homens que pereçam. Portanto, Deus não condena ninguém.

Pelo contrário, é dito em Mal 1,2s: Amei Jacó; odiei Esaú.

Solução. É necessário dizer: Deus condena alguns. Já se disse anteriormente (a. 1) que a predestinação é parte da providência, e à providência, como também foi dito (q. 22, a. 2 ad 2), pertence permitir a existência de algum defeito nas coisas que lhe estão submetidas. Por isso, como pela providência divina os homens estão ordenados à vida eterna, também pertence à providência divina permitir que alguns não alcancem este fim. E a isto se chama condenar. Portanto, assim como a predestinação é parte da providência com respeito àqueles que, divinamente, estão ordenados à salvação eterna, assim também a condenação eterna é parte da providência com respeito àqueles que não alcançam o dito fim. Daí que a condenação inclua, além da presciência, a providência segundo nosso modo de entender, como já se disse (q. 22, a. 1 ad 3). Assim como a predestinação inclui a vontade de conceder a graça e a glória, assim também a condenação inclui a vontade de permitir a alguém cair em culpa e receber a pena pela culpa.

Respostas às objeções:

1. À primeira deve-se dizer: Deus ama a todos os homens e também a todas as criaturas enquanto lhes deseja algum bem; e, contudo, não quer qualquer bem para todos. Quando não quer para alguns o bem da vida eterna, se diz que os odeia ou os condena.

2. À segunda deve-se dizer: enquanto causa, a condenação não é o mesmo que a predestinação. Pois a predestinação é causa do esperado na vida futura pelos predestinados, isto é, a glória; e é causa, também, do que se recebe na vida presente, isto é, a graça.

Pelo contrário, a condenação não é causa do que acontece na vida presente, isto é, da culpa, na qual Deus não tem parte.
Mas, mesmo assim, é causa de sua retribuição futura, isto é, a pena eterna. Mas a culpa provém do livre arbítrio pelo qual se condena e se separa da graça. Este é o sentido do que é dito pelo profeta: Israel, tu mesmo te perdes.

3. À terceira deve-se dizer: A condenação de Deus não tira a capacidade do condenado. Por isso, quando se diz que o condenado não pode alcançar a graça, não se deve entendê-lo como uma impossibilidade absoluta, mas condicionada, do mesmo modo que é necessário que o predestinado se salve, como já dissemos (q. 19, a. 8 ad 1), com necessidade condicionada, isto é, que não anule a sua liberdade de arbítrio. Pois isso, se bem que o condenado por Deus não possa alcançar a graça, porém, o que incorre neste ou naquele pecado, esse o faz seguindo sua liberdade de arbítrio. Por isso, com razão se lhe imputa a culpa.

Suma Teológica, I, q. 23, a. 4:

Os predestinados são ou não são eleitos por Deus?

Objeções pelas quais parece que os predestinados não são eleitos por Deus:

1. Dionísio, no cap. 4 De Div. Nom. [1] diz que assim como o sol sem acepção emite sua luz sobre todos os seres corpóreos, assim também Deus o faz com sua bondade. Mas a bondade divina se comunica a alguns sobretudo pela participação da graça e da glória. Logo Deus comunica sua graça e sua glória sem eleição. Isto pertence à predestinação.

2. Além disso, a eleição se faz entre os que existem, mas a predestinação desde a eternidade se estende também aos que não existem. Logo alguns predestinados o são sem eleição.

3. Mais ainda, a eleição implica certa seleção. Mas, tal como se diz em 1Tm 2,4: Deus quer salvar a todos os homens. Logo a predestinação, que predetermina os homens à salvação, se dá sem eleição.

Pelo contrário, está o que se diz em Ef 1,4: Nos escolheu n'Ele antes da fundação do mundo.

Solução. É necessário dizer: Tal como a entendemos, a predestinação pressupõe eleição, e a eleição pressupõe amor. O porquê disto está em que a predestinação, como se disse (a. 1), é parte da providência, e a providência, como a prudência, é a razão presente no entendimento, dirigindo a ordenação das coisas a um fim, como já se afirmou (q. 22, a. 1). E nada se predetermina para um fim se não há vontade de tal fim. Por isso, a predestinação de alguns à salvação eterna pressupõe, tal como o entendemos, que Deus queira sua salvação. E a isto pertencem a eleição e o amor. O amor enquanto quer para eles o bem da salvação eterna. pois amar é querer o bem para alguém, como afirmamos (q. 20, a. 2 e 3). E a eleição, enquanto quer este bem para uns e não para outros, aos quais condena, como também afirmamos (a. 3). Sem dúvida a eleição e o amor não indicam o mesmo para Deus e para nós. Em nós, a vontade de amor não causa o bem, mas somos incitados a amar pelo bem já existente, escolhendo a quem amar. Por isso em nós a eleição precede o amor. Mas em Deus acontece o contrário, pois sua vontade, pela qual amando quer o bem para alguém, causa que uns alcancem o bem e outros não. Assim, tal como o entendemos, o amor pressupõe a eleição, e a eleição, a predestinação. Por isso, todos os predestinados são eleitos e amados.

Resposta às objeções:

1. À primeira deve-se dizer: Se se considera em geral a comunicação da bondade divina, tal bondade se comunica sem eleição, quer dizer, nada há que não participe algo de sua bondade, segundo foi dito (q. 6, a. 4). Mas se se considera a comunicação deste ou daquele bem, não se concede sem eleição,
porque há bens que são concedidos a uns e não a outros. Nisto consiste a eleição ao conceder a graça e a glória.

2. À segunda deve-se dizer: Quando a vontade de eleger é incitada a eleger pelo bem preexistente, então é necessário que a eleição seja do que existe.

Assim sucede em nossa eleição. Mas, como já dissemos (q. 20, a. 2), em Deus não é assim. Por isso, como disse Agostinho [2]: Os que não existem são eleitos por Deus e, mesmo assim, quem elege não se equivoca.

3. À terceira deve-se dizer: Como já foi dito (q. 19, a. 6), Deus quer de forma antecedente que todos os homens se salvem. Esta forma de querer não consiste em querer algo absolutamente, mas de certo modo. Deus não o quer de forma consequente, que consiste em querer algo absolutamente. [1] § 1: MG 3,693: S. Th. lect.1.

[2] Serm. ad Popul. n.26 c.4: ML 38,173.

II – A VONTADE E O LIBRE-ARBÍTRIO

OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO – AS VINTE E QUATRO TESES FUNDAMENTAIS, Pe. Édouard Hugon O. P., traduzido por D. Odilão Moura O. S. B., EDIPUCRS, Porto Alegre, 1998 (o autor foi conselheiro de várias Congregações Romanas e assessor de três papas: São Pio X, Bento XV e Pio XI – os três pontífices jamais deixavam de consultar o piedoso e prudente dominicano em questões atinentes à doutrina. Em particular, este livro foi escrito por recomendação de São Pio X).

EXCERTOS

Capítulo Oitavo

A VONTADE E O LIVRE-ARBÍTRIO

Tese XXI – "Intellectum sequitur, non praecedit voluntas, quae necessário appetit id quod sibi praesentatur tanquam bonum ex omni parte explens appetitum, sed inter bona quae judicio mutabili appetenda proponuntur, libere eligit. Sequitur proinde electio judicium practicum ultimum; at quod sit ultimum voluntas efficit." [*]

"A vontade segue o intelecto, não o precede. Ela se aplica necessariamente sobre o objeto que lhe é apresentado como um bem que sacia totalmente o apetite, mas entre os bens que lhe são propostos por um juízo reformável, ela escolhe livremente. A eleição, portanto, segue o último juízo prático, mas que este juízo seja o último é a vontade que escolhe" [1].

Os pontos fundamentais que vão afirmados nesta tese têm em vista:

1- As relações da vontade com a inteligência;
2- A necessidade em que se acha a vontade de se dirigir para o bem o universal;
3- A sua independência relativamente aos bens particulares;
4- A relação entre a eleição e o último juízo prático.

[*] Cf. ST I., 82; 83; QQ. disp. De Verit. XIII, 5; De Malo II; II Cont.
Gent. 72 ss; HUGON. Cours. Phil. Thomist. II, II; GARRIGOU LAGRANGE. Intellectualisme et Liberté. (Revue des Scienc. Philosoph. Et Théolog. – oct., 1907).

[1] S. T. I, 19.1; HUGON. Cours. Philosoph. Thomist. 111, III.

I – A vontade e a inteligência

O princípio que domina e rege a presente questão, é que a vontade segue a inteligência, de tal modo que todo ser inteligente, justamente porque é inteligente, é necessariamente dotado de vontade.

Toda natureza tem uma tendência proporcionada que nasce da forma e sempre a acompanha. Constituído por sua forma específico, posta por ela em atividade, o ser recebe dela sua inclinação e por isso verificamos na criação tantas inclinações irredutíveis quantas as formas diversas: a forma do cristal é seguida duma tendência que mantém a unidade e faz reparar os ângulos quebrados segundo o mesmo invariável tipo; a forma da planta é seguida de uma outra inclinação que busca o bem do todo, faz tudo convergir para a perfeição da planta, para o seu desenvolvimento, sua conservação e sua propagação.

Como aqui não há senão a forma natural, não descobrimos senão uma tendência do mesmo gênero, e a chamamos de apetite inato. O animal que, conservando a sua própria natureza, recebe a forma intencional ou a imagem dos seres corporais, deve ter, com seu apetite inato, um apetite sensível, saído da forma e do conhecimento sensível; o homem e o anjo, que recebem uma forma intelectual destituída de sua substância, terão também um apetite intelectual distinto da sua substância, e este apetite é a vontade [2].

Deus, que está no ápice da imaterialidade e da espiritualidade, deve ter uma vontade perfeita, ato puro e idêntico à substância. Portanto é verdade que todo conhecimento é seguido dum apetite proporcionado e que o ser inteligente, precisamente porque é inteligente e assimila espiritualmente os objetos, deve ter um apetite espiritual ou vontade [3].

[2] Cf. FRANK. Dict. Philosoph., palavra vontade.

[3] Este conjunto constitui o que S. Tomás chama consistentiam naturalem. Cf. ST I. II 10,1.

Fora de Deus, a vontade não pode ser substância, porque, princípio de operações acidentais, ela deve reproduzir o mesmo gênero que é o seu, isto é, o de acidente.

Nossa prova fundamental mostra que a vontade resulta ou emana da essência da alma por intermédio do entendimento, como o apetite nasce da forma.

Portanto, como à vontade procede necessariamente da inteligência, toda filosofia que coloca a vontade antes da inteligência ofende a natureza e o senso comum.

II – Como a vontade se dirige para a o bem universal

Segue-se daí também que a vontade, saída da inteligência, deve ser esclarecida por ela e se dirigir para o seu objeto, segundo ele lhe é apresentado pelo entendimento. Quando este propõe o bem universal, que pode saciar todos os desejos, preencher todas as suas capacidades, satisfazer todas as suas tendências, a vontade será necessariamente dominada por um objeto maior que ela mesma, e assim como o nosso espírito adere necessariamente aos primeiros princípios evidentes e às conclusões que evidentemente deles derivam, também a vontade se dirige para o último fim, que é o bem universal, o bem em toda plenitude, e para os meios necessários e evidentemente ligados a este fim.

Há um conjunto de coisas que formam um todo indissolúvel, sem o qual o nosso ser humano não poderia subsistir [4], e diante do qual a vontade não poderia ficar indiferente: é por isso que ela quer necessariamente o bem para si, a verdade para a inteligência, para as outras faculdades os seus objetos próprios, para o homem inteiro a existência e a vida. Querer a felicidade é querer viver para sempre.

[4] P. JANVIER, OP. La Liberté (segunda conferência).

III – Como a vontade se dirige para os bens particulares

Quanto aos bens particulares que a inteligência mostra como não estando necessariamente ligados ao bem universal, a vontade conserva a sua independência. Sua escolha é livre, como também o julgamento do espírito é reformável. Já se vê que a prova fundamental da liberdade é a própria natureza da substância racional. "O homem é livre, porque é inteligente; o livre arbítrio é um apanágio e um privilégio do espírito. Onde quer que exista espírito haverá liberdades" [5]. Ora, esta independência provém da elevação da alma sobre a matéria. "A vontade humana é livre porque ela é uma energia capaz de apreender o bem universal e absoluto; essa dimensão imensa lhe vem da inteligência e da alma. A alma e a inteligência a possuem da sua independência da matéria, ou, se quiserdes, da sua espiritualidade. Por isso, espiritualidade da alma e liberdade constituem uma só coisa. Esses dois dogmas da razão mantêm-se entre si, em nossos espíritos, pelo fio de ouro e indestrutível da sabedoria, como eles se mantém na realidade pelo laço duma vida imortal" [6].

O espírito, pela própria causa da sua amplitude, que lhe permite ver todas as faces da realidade, descobre no objeto finito uma face agradável, que pode excitar na vontade uma verdadeira complacência, e uma face desagradável, que pode provocar a repulsa; ele as apresenta à vontade ao mesmo tempo todas as duas. O objeto assim proposto não poderia dominar a vontade, porque ele é menor que ela, destinada ao infinito: ele é incapaz de satisfazer uma capacidade imensa. A vontade tem uma razão de o aceitar, devido ao primeiro aspecto ou a primeira face, e uma razão de o repelir, devido ao outro aspecto. Nenhuma alternativa se impõe. Se uma é adotada, isto provém desta independência, desta amplitude da vontade, semelhante à amplitude da inteligência e à da alma.

[5] Idem, ibidem.

[6] BOSSUET. Connaissance de Dieu e de soi même. I, n° XV; Traité du Libre
Arbitre; FÉNELON, Traté de l'éxistence de Dieu.

Quando S. Tomás diz que a vontade permanece indiferente em presença dos objetos finitos, não entende que dela dependa não aprovar nenhuma alegria ou nenhum desprazer, mas somente que a aceitação final ou definitiva vem somente dela, precisamente por que ela é maior que todos os objetos. Desse modo é livre a escolha, porque o juízo é reformável — mutabili judicio
proponuntur.

Tal é a grande prova tomista, que confirmam, de outra parte, a consciência e o senso comum. Ouçamos, quanto a isso, dois pensadores franceses: "Um homem que não tem o espírito corrompido, diz Bossuet, não necessita que lhe provem que possui o seu livre arbítrio, pois ele o sente; e ele não sente mais claramente, quer veja ou viva, quer raciocine ou quer não se sinta capaz de deliberar ou de escolher" [7]. Acrescenta Fénelon:

“É visível que esta filosofia carece de unidade e que desmente a si mesma sem pudor algum".

Mas para terminar a demonstração, será necessário comparar a eleição com o último juízo prático, porque é a indiferença do juízo que assegura a liberdade.

IV – Análise da eleição

A psicologia da liberdade compreende uma série de atos coordenados, quer do lado da inteligência, quer do lado da vontade.

O primeiro é a apreensão do bem no espírito, e lhe corresponde, da parte do apetite, a volição; depois, vem o juízo pelo qual a razão propõe o fim como possível e conveniente, o que corresponde, na vontade, à intenção do fim. Será necessária, em seguida, uma pesquisa pormenorizada das medidas que devem ser tomadas: é o conselho, que comporta muitas etapas para descobrir os meios adaptados, ponderar a utilidade de cada um deles, propor os que são dignos de preferência. Ao conselho do espírito corresponde, na vontade, o consentimento. Qual será então o que irá determinar em última instância o meio que devemos preferir aos outros? É o juízo prático ao qual, na vontade,corresponde a eleição.

[7] Cf. ST. I.II 11,18; GARDEIL. La crédibilité I, I; P. PÉGUES. coment. l. II. l I.

Trata-se, agora, de passar à execução: da parte do espírito é necessário o mandamento; do lado da vontade, a aplicação ativa, que põe em movimento as diversas faculdades, e do lado destas assim postas em movimento, aplicação passiva. Uma vez que a execução está feita, a vontade repousa no fim realizado ou no bem possuído: é o gozo, décimo segundo e último ato, que
coroa toda a série [8].

O nosso estudo insiste sobre o juízo prático e sobre a eleição. E com razão, porque a liberdade se define: a faculdade de escolher. (vis electiva). Todo o jogo da liberdade está nesta harmonia da eleição e do juízo prático.

Às vezes, há desacordo entre o juízo especulativo e a conduta da vida, porque o homem escolhe muitas vezes o que a sua razão fortemente condena, mas, quando o juízo prático está formulado, a eleição segue infalivelmente.

Visto que, com efeito, o espírito é de si mesmo indiferente, o juízo não é prático, e não será o último, a não ser que a vontade impulsione o espírito a sair desta indeterminação e a se pronunciar efetivamente neste sentido.

Ora, pelo próprio fato de que ela mesma se aplica a tal parte, ela se engaja a seguir nesta parte. Haveria flagrante contradição em seguir o contrário, como também quanto ao longo tempo da demora deste juízo prático. É isto uma necessidade hipotética feita pela própria eleição, é uma lei que constitui trabalho específico da vontade, e que, por conseguinte, atesta sua plena independência e a garantia da liberdade. Enquanto este juízo prático estiver mantido, a escolha fica suspensa, mas a vontade poderá aplicar o espírito a outra determinação, e poderá ainda levá-lo à renovação desta determinação a assumir uma outra. Será, pois, o juízo prático efetivamente o outro? É realmente a vontade que o faz segundo os termos da nossa tese: at quod sit
ultimum voluntas efficit.

[9] BOSSUET. Traité du Livre Arbitre, XIV.

Esta análise do ato livre é suficiente para refutar a objeção dos deterministas. Seria a eleição inexplicável, se ela se realizasse sem razão adequada, mas um motivo suficiente para provocar tal escolha não é motivo necessitante. O último motivo que necessita é o fim último, o bem universal e absoluto. Ora, não é para tal objeto que leva a eleição, mas para os bens particulares. Estes terão sempre, já o dissemos, uma face agradável, e é um motivo suficiente para serem amados. Se a vontade se fixa num deles, não age de maneira cega, pois a sua escolha se explica. Mas, como eles também possuem outra face, que é suficiente para afastá-los, nenhum deles se impõe, e, então, uns são rejeitados e um só aceito, e tal provém da plena independência da vontade espiritual.

Eis nos seus princípios essenciais, e nas suas grandes aplicações, a psicologia de Santo Tomás.

A primeira tese da ontologia nos levou a encontrar Deus no Ato Puro; a última da psicologia, nos conduziu à Providência: "Se tivéssemos destruído ou a liberdade pela Providência ou a Providência pela liberdade, não saberíamos por onde começar, tanto essas duas coisas são necessárias, e tanto são evidentes e indubitáveis as ideias que delas temos".

Capítulo Sexto

A VONTADE DE DEUS

I – A vontade encontra-se em Deus excelentemente

Esta asserção é uma verdade de fé constantemente afirmada nas Escrituras e expressamente definida pela Igreja [1].

No Antigo Testamento, os Salmos atribuem à vontade divina a criação: "Tudo o que ele quis, ele o fez no céu e na terra" [2]; "Ele ordenou, e tudo foi criado" [3]; "Suas obras são grandes e conforme as suas vontades" [4]. Os Profetas glorificam a eficácia absoluta desta adorável vontade: "Meu conselho é firme, e todas as minhas vontades acontecem." [5]

Nosso Senhor, distinguindo tão claramente a sua vontade humana da vontade divina – "Que vossa vontade seja feita e não a minha" [6], prova a existência das duas. São Paulo assegura que a vontade de Deus tem por objeto nossa santificação [7], que ela é misteriosa, insondável, toda poderosa, irresistível [8], boa, benfazeja, perfeita [9].

**********************************************

[1] Uma exposição Teológica não pode prescindir da doutrina das Escrituras e dos Santos Padres, por isso, trazemos textos de ambos, embora breves.
[2] Ps. CXXV, 6.
[3] Ps. CXLVIII, 5.
[4] Ps. CX, 2.
[5] Is, XL, 10.
[6] Luc., XXII, 42.
[7] I Tess., IV,3.
[8] Rom IX, 18s.
[9] Rom., XII, 2.

O concílio Vaticano I afirma, contra os ateus, os materialistas e os panteístas, que Deus é infinito na inteligência, na vontade e em todas as perfeições [10].

Esse dogma está necessariamente ligado com as outras verdades fundamentais da nossa fé. Não se pode conceber a Trindade sem uma processão de vontade e de Amor.

A criação é obra de uma vontade eficaz e não menos que de uma inteligência infinita. Todas as vias divinas referentes ao mundo, à salvação, à reparação do gênero humano, à graça, à glória, supõem uma vontade infinitamente boa, que gratuitamente ama as criaturas.

Enfim, a vontade, perfeição tão nobre que acompanha a inteligência dos anjos e a nossa, não pode faltar àquele que é chamado de inteligente e perfeito.

Diz Santo Irineu: "Também Deus pensa quando Ele quer, e Ele quer quando pensa: Ele é pensamento, vontade e fonte de todos os bens" [11].

II – A vontade de Deus é soberanamente livre em relação a tudo que não é Ele

É evidente que Deus necessariamente quer o seu ser, sua vida, sua beatitude, em uma palavra, tudo o que é Ele mesmo. Não podemos ficar indiferentes senão diante do que é limite, lacuna, imperfeição: dizer que permanece livre em relação a Ele mesmo, seria reconhecer que a Sua bondade é medida e a sua perfeição incompleta. Logo, Deus Se conhece e se quer necessariamente;

Ele produz espontânea e necessariamente seu Verbo e seu Amor, mas não cegamente, porque essa dupla ação é espiritual e consciente.

[10] DENZINGER, 1782, 3001.
[11] S. IRINEU. Adv. Haereses, l. I, c. 12; P. G., VII, 574.

Com relação a tudo que não é ele, a sua vontade goza de soberana independência, que é a liberdade perfeita. Verdade de fé, que muitos erros tentaram obscurecer.

Os pagãos acreditavam que Deus, ligado pelo destino como os mortais, operava inúmeras vezes por necessidade. Os monistas, os panteístas, os imanentistas, submetendo Deus à evolução, atacam sua liberdade, não menos que sua imutabilidade. Arnaldo de Brescia, Abelardo, Wiclef, Lutero, Calvino, não conseguem isentar Deus do seu fatalismo. Alguns filósofos nacionalistas, como Emílio Saisset, Cousin, Robinet, pretenderam que Deus não podia não criar. Guenther e Hermes parecem dizer que Deus criou o mundo quase tão necessariamente quanto Ele se ama a si mesmo.

A Escritura mostra Deus agindo com plena liberdade. No momento de criar o homem, ele busca conselho nas profundezas da sua eterna sabedoria e é na plenitude da sua independência que ele diz: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" [12]; "O que ele produziu no céu e na terra, ele o fez porque quis" [13]; "Não foi devido a uma fatalidade, mas por ele mesmo que ele criou todas as coisas" [14]. O mesmo se deu na ordem sobrenatural: "Se ele insufla a graça nas almas, se distribui os carismas, é porque ele o quer e como o quer" [15].

Os Santos Padres defenderam esse dogma com energia. Diz Teófilo de Antioquia: "O poder de Deus se mostra ao criar as coisas do nada e a criá-las com toda liberdade" [16]. Macário, após ter explicado que Deus com toda liberdade criou o mundo, acrescenta que o homem é feito à imagem de Deus, porque ele é livre como o Criador [17], "Deus tem toda independência para agir, observa santo Epifânio, mas de tal modo que ele faz sempre o que convém a sua divindade" [18]. "Buscar porque Deus criou o mundo, é buscar a causa da vontade divina, conclui santo Agostinho. Ora, não há nada maior do que a vontade de Deus, pois não há causa que a determine" [19]. É dizer que ela é soberanamente livre e independente, porque não tem outra lei que a lei sempre sábia que o seu bem querer.

[12] Gen., 1, 26.
[13] Ps. CXXXV, 6.
[14] Prov. XVI, 4.
[15] Jo. III, 8: 1, Cor. XII, 11.
[16] S. TEÓFILO DE ANTIOQUIA. Ad Antolycum, l. II; P. G., VI, 1072.
[17] MACÁRIO. Fragm.; P. G., X, 1392, 1398.
[18] S. EPIFANIO. Haeres, 70, 7; P. G., XLII, 349.
[19] S. AGOSTINHO. De 83 quaest., q. 28; P. L., XL, 18.

Numerosas são as declarações do Supremo Magistério a respeito da liberdade de Deus. O Papa Inocêncio II proclama que Deus poderia fazer de outro modo o que fez [20]. João XXII condena a proposição na qual Eckart sustenta que o Pai cria o mundo "como gera o seu Filho" [21]. O concílio de Florença crê e prega que Deus criou o mundo quando quis e por pura bondade [22]. Pio IX denuncia as teorias de Guenther, contrárias à fé Católica, referentes à liberdade de Deus, que está isenta de toda necessidade na produção das criaturas [23]. O concílio Vaticano I, no capítulo De Deo Creatore, estabelece primeiramente o princípio da liberdade divina: "Deus cria, não por necessidade ou indigência, mas por bondade, para manifestar as suas perfeições nos bens que concede às criaturas, e na plenitude do seu conhecimento e da sua liberdade, por um designo muito livre – libérrimo consilio" [24]. Depois, no canon 5°, ataca frontalmente todos os erros, sejam dos panteístas e dos racionalistas, sejam os de Guenther: "Anátema a quem disser que a vontade divina não é livre de toda necessidade, mas que Deus criou o mundo tão necessariamente quanto ele ama a si mesmo" [25].

O Santo Ofício, aos 14 de dezembro de 1887, proscreveu a 18a. proposição de Rosmini: "O amor pelo qual Deus se ama nas criaturas, e que é a razão pela qual ele se determina a criar, constitui uma necessidade moral, que, no Ser perfeito, produz sempre o seu efeito" [26]. Portanto, em Deus não há nem necessidade moral, nem determinismo físico. Enfim, Leão XIII, afirma e prova de novo este dogma: "Deus é infinitamente perfeito e soberanamente inteligente e a bondade por essência; é também soberanamente livre, embora não possa querer de modo algum o mal da falta, como também não o podem, devido à contemplação do bem supremo, os bem-aventurados do céu" [27].

[20] DENZINGER, 374. 726.
[21] Idem, 503. 933.
[22] Idem, 706. 1333.
[23] Idem, 1655. 2106.
[24] Idem, 1783. 3002.
[25] Idem, 1805. 3065.
[26] Idem, 1908. 3218.
[27] Encycl. Libertas, 1888.

Para apreciar essa doutrina e responder às objeções, é necessário lembrar as diferenciações que fizemos a respeito da imutabilidade divina: "Embora o ato de Deus seja em si mesmo infinito, necessário, eterno, o termo não o é: nenhum objeto criado merece por ele mesmo e necessariamente ser o termo da vontade divina, porque não é de tal modo perfeito que Deus deva o escolher, nem de tal modo defeituoso, que Deus o deva necessariamente rejeitar. Por esse lado, portanto, a independência divina permanece perfeita; e, se tal plano é adotado, e tal efeito existe, e sem necessidade alguma da parte do Criador, em virtude duma escolha muito livre, liberrimo consilio, como já o disse o Vaticano I.

 

III – A vontade de Deus relativa à salvação dos homens

Há duas grandes categorias de erros inteiramente opostas quanto à vontade salvífica de Deus. Segundo os Pelagianos, Deus quer igual e indiferentemente a salvação de todos os homens, se estes a querem por eles mesmos. Eles podem chegar ao termo sem o socorro da graça, ou, se a graça é necessária como admitem os Semi-Pelagianos, eles podem pelos seus esforços naturais prepararem-se e a merecer.

Em posição oposta, os predestinacionistas, e, mais tarde, alguns corifeus da Reforma ousaram proferir a blasfêmia de que Deus quer a salvação de alguns e a condenação eterna de outros. Os Jansenistas renovam essa heresia com alguns matizes: antes da falta original Deus quer a salvação de todos os homens, depois da queda, ele não quer senão a salvação dos predestinados.
Voltaremos a esses erros sobre a predestinação e sobre a graça. Aqui, nos limitaremos a expor a doutrina católica sobre a vontade salvífica, ou sobre a universalidade da redenção, porque é manifesto que Deus sinceramente quer a salvação de todos pelos quais ele entregou o seu próprio Filho à morte.

A) – É de fé que Jesus Cristo morreu para os outros, não somente pelos eleitos. O Papa Inocêncio X condenou como herética a 5a. proposição de Jansênio, que Cristo não teria morrido e não teria derramado o seu sangue a não ser somente pelos predestinados [28]. Os textos da Escritura e da Tradição, que citaremos no momento oportuno, provam ao menos essa primeira universalidade.

B) – É de fé, admitem comumente os teólogos, que Jesus Cristo morreu por todos os fiéis. É impossível interpretar de outro modo a afirmação categórica de S. Paulo: "Ele é o Salvador de todos os homens, e, em primeiro lugar, dos fiéis": Salvator omnium hominum, maxime fidelium [29]. Além disso, todos os fiéis são obrigados a crer, como um artigo de fé, as palavras do Símbolo: "Por nós e para nossa salvação, desceu dos céus, encarnou-se, sofreu, morreu". Logo, é de fé que Deus quer a salvação de
todos os homens.

C) – É doutrina ao menos próxima da fé que Jesus Cristo morreu por todos os adultos, até pelos infiéis. Acabamos de ouvir São Paulo nos dizer que, se Cristo quer especialmente a salvação dos fiéis, ele será, contudo, o Salvador de todos os homens "Salvator omnium hominum" [30].

[28] DENZINGER, 1096. 2005.
[29] 1. Tim., VI, 10.
[30] I. Tim., II, 1-6.

Demais, ele recomenda orar por todos homens, porque isto é agradável ao Salvador, nosso Deus, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Com efeito, há um só Deus, um só mediador entre Deus e os homens, o Cristo Jesus, que a si mesmo se deu por resgate de todos.

Todas as particularidades dessa argumentação do Apóstolo estabelecem que a vontade salvífica tem um alcance universal e sem restrição:

1- Deve-se rezar por todos, porque Deus quer que todos sejam salvos;
2- Há para todos só um e mesmo Deus, um só e mesmo Mediador;
3- Ele propõe a todos o conhecimento da verdade, o meio de alcançar a salvação;
4- Cristo pagou por todos, e esta imensa redenção é Ele mesmo.

O Apóstolo inculca por todo o seu ensinamento o dogma da vontade salvífica: Cristo morreu por todos aqueles que pecaram em Adão, e a sua graça tem maior universalidade e eficácia para o bem do que a falta de Adão, para o mal. [31]. Ele morreu por todos, para que aqueles que vivem não vivam para si mesmos, mas para aquele que morreu por todos e que ressuscitou [32].

O Antigo Testamento já havia pregado essa consoladora doutrina. O livro da Sabedoria explica longamente quanto Deus ama todos os homens e que tem piedade mesmo dos pecadores endurecidos e dos idólatras de malícia inveterada e parecer incorrigível [33].

Vejamos agora a interpretação dos Santos Padres. "Deus quer que todos os homens sejam salvos, diz S. Gregório de Nissa, e a vontade de Deus não está em causa se alguns se perdem". [34]

Escreve Santo Ambrósio: "Ele quer ter para si todos os homens que criou. Possas tu, o homem, não fugir para longe de Cristo, não te esconder dele! E, todavia, ele procura ainda aqueles que se escondem" [35]. Diz S. Próspero: "Deus tem cuidado de todos os homens. A infidelidade eles devem atribuir a si mesmos e a fé, à graça de Deus" [36].

[31] Rom., V, 15. ss.
[32] II Cor., V, 14-15.
[33] Sap. XI.
[34] S. GREGÓRIO NISSENO. Adv. Apollin. 29, P. G., XLV, 1187.
[35] S. AMBROSIO. Enarrat in Ps. 39, no. 20, P. L., XIV, 1117.
[36] S. PRÓSPERO. Ad capit, Gallorum, 8; P. L., LI, 164.

Quanto à Declaração do Magistério da Igreja, será suficiente citar o capítulo III do concílio de Kiersy, em 853: "O Deus todo-Poderoso quer que todos os homens, sem exceção, sejam salvos, embora, de fato, nem todos se salvem. Que eles se salvem, é dom do salvador, que alguns se percam, é por sua falta" [37].

4 – É o ensinamento quase unânime dos teólogos que Jesus Cristo morreu até pelas crianças sem o uso da razão e que não receberam a graça do Batismo. Ora, nós vimos que o Salvador deu o seu sangue por todos os que morreram em Adão. Por conseguinte, pelas criaturas, como também pelos adultos. Logo, eles estão contados na fórmula universal: "Salvator omnium hominum", o Salvador de todos os homens, e nada autoriza excluí-las.

Deus lhes preparou (às crianças também) os meios de salvação, e quando s não se beneficiam, isto decorre de causas segundas pelas quais não concorreram com a indispensável cooperação.

Por outro lado, a sorte eterna dessas crianças não é tão lamentável como pretenderam os jansenistas, e não é uma fábula pelagiana, declara Pio VI, este lugar do limbo, onde as crianças estão isentas da pena do fogo [38]. Muito mais, no dizer de Santo Tomás, elas têm de Deus um conhecimento e um amor naturais que são para elas a fonte de verdadeiras alegrias: "De ipso gaudere naturali cognitione et dilectione" [39].

Não tendo aqui em vista senão as verdades de Fé Católica, não entraremos na exposição dos diversos sistemas da escola a respeito da vontade de Deus. Embora existam soluções particulares, é certo que a vontade divina a nosso respeito é soberanamente benfazeja e que: "Querer o que Deus quer é a única ciência que nos põe em repouso [40].

[37] DENZINGER, 318. 623.
[38] Bull. Auctorem Fidei, n. 26; DENZINGER-BANNWART, 1526. 2626.
[39] ST. Supplem., p. 71, a. 1.
[40] Cf. sobre a vontade divina: ST, I, P., q. 19. e o Comentário de PÉGUES;
Mgr GINOULHIAC, Histoire du dogme catholique, l. III, ch 8-9; P. MONSABRÉ.
9a. Conférence; A. FARGES. L'Idée de Dieu. p. 383, ss.; P. GARRIGOULAGRANGE.
op. cit.

A PREDESTINAÇÃO E A REPROVAÇÃO

I – Noção e existência da predestinação

A predestinação pode ser definida: é o ato misericordioso pelo qual, desde toda eternidade, Deus amou gratuitamente, escolheu livremente e orientou eficazmente para a beatitude suprema todos aqueles que devem ser salvos. Os termos dessa definição se compreendem por si mesmos. Se toda graça é uma misericórdia, deve-se considerar como soberanamente misericordioso o ato divino que assegura o coroamento eterno da graça, o insigne beneficio, a glória.

Os predestinados são escolhidos e, antes de tudo, os bem amados, porque toda escolha supõe o amor. Deus, portanto, ama, desde toda eternidade com um amor que, não tendo sido provocado pela sua criatura, é, de sua parte, inteiramente gratuito; e, porque ele a escolheu, ele orienta eficazmente para o seu destino, de modo que o eleito chegará infalivelmente, embora com a sua livre cooperação, ao termo da salvação.

A predestinação é mais que a Providência comum, mais até que a Providência sobrenatural; em geral ela é uma Providência toda singular que garante ao eleito graças eficazes para o tempo e glória para a eternidade.

Todos os católicos admitem, contra os Pelagianos, a existência em Deus de uma predestinação. Alguns teólogos da escola de Molina, sem praticamente pôr em dúvida a Predestinação, pensaram que teoricamente ela não era em absoluto necessária, e que os mesmos efeitos poderiam, em rigor, ser ‘arrebanhados’ pela Providência geral. Ambrósio Catarino distingue duas espécies de predestinados: para a Virgem Maria, e para os heróis da santidade que devem constituir as maravilhas da ordem sobrenatural, é necessária uma predestinação especial; mas, para o comum dos eleitos, a predestinação não é absolutamente necessário. Essa opinião não tem mais defensores.

Outros teólogos, em contrário, declaram com o dominicano Domingos Bañez, que não se pode sem prejuízo para a fé negar a necessidade da predestinação divina [1].

O que quer o que se pense sobre esta questão especulativa a respeito da necessidade absoluta, a existência de fato de uma predestinação é verdade de fé.

Temos, em primeiro lugar, as afirmações categóricas da Escritura: "Vinde benditos de meu Pai, possuir o reino que vos foi preparado desde a origem do mundo" [2]. Portanto, Deus desde toda eternidade preparou para os seus eleitos, seus bem-amados, a beatitude e a glória, e esta preparação é uma eleição; uma predestinação especial, porque ela não foi concedida a todos os homens, nem mesmo a todos os cristãos.

S. Paulo é o Doutor da predestinação: "os que Deus predestinou, os chamou, os justificou, os glorificou" [3]. O Apóstolo atribui ao ato misterioso de Deus, chamado predestinação, três grandes efeitos: a vocação à salvação, a justificação pela graça, a glorificação no céu.

Em outro texto ele volta a essa doutrina: "Deus nos escolheu no Cristo, antes da constituição do mundo, para que sejamos santos e imaculados aos seus olhos, na caridade; ele nos predestinou para que fôssemos seus filhos adotivos, por Jesus Cristo, segundo o bel prazer da sua vontade, para o louvor da glória de sua graça". [4]

[1] Cf. BAÑEZ e os outros comentadores na S. T., in I. P., q.23.
[2] Mat., XXV, 34.
[3] Rom., VIII, 28, 30.
[4] Ef. I, 4, ss.

Toda a teologia da salvação está condensada nesse texto. Deus escolheu os bem-amados desde toda eternidade, e escolhendo-os, tinha um ideal, olhava para um modelo, o seu Bem-amado por excelência, o Cristo Jesus, cuja filiação natural é o tipo da nossa filiação adotiva; Ele nos elegeu gratuitamente segundo o seu bel prazer, e para que própria felicidade se tornasse glória para ele.

Alguns rápidos testemunhos dos Santos Padres nos instruem sobre a tradição católica. "Esta predestinação que defendemos segundo a Sagrada Escritura, diz Santo Agostinho, ninguém a pode contestar, sem erro" [5]. Acrescenta S. Próspero: "Nenhum católico nega a predestinação divina" [6]. Conclui São Fulgêncio: "Crede firmemente que Deus antes da constituição do mundo, predestinou como filhos adotivos todos aqueles os quais quer fazer por sua bondade gratuita vasos de misericórdia". [7]

Eis agora as declarações do Magistério Eclesiástico. Lê-se no concílio de Kiersy (853): "O homem, ao fazer um mau uso do seu livre-arbítrio, pecou e caiu; daí vem esta massa de perdição; do gênero humano inteiro. Deus justo e bom escolheu nessa massa pela sua presciência aqueles que por sua graça predestinou à vida, e ele os há predestinado para a vida eterna." [8] Assim, o ato eterno de Deus é uma eleição, e tal eleição é gratuita, porque é pela graça que Deus escolhe: essa escolha predestina os eleitos para a vida eterna.

Ensina o concílio de Valença (855), a esse respeito, três verdades principais:

"1° que há uma predestinação dos eleitos para a vida eterna; 2° esta eleição é uma misericórdia que precede as boas obras dos santos;  3° pela predestinação Deus decreta de toda a eternidade o que ele mesmo cumprirá no tempo, pela sua misericórdia gratuita." [9]

[5] S. AGOSTINHO. De Dono Persev., c. XIX, n. 48, P. L., XLV. 1023.
[6] S. PROSPERO. Resp. I, ad object. Gall.; P. L., LI, 157.
[7] S. FULGENCIO. De Fide ad Petrum, c. XXV.; P. L., LXV, 703.
[8] DENZINGER. 316. 621.
[9] Idem., 322. 628.

O concílio de Trento constantemente apela para o dogma da predestinação como para um mistério tão insondável quanto certo: "Que ninguém, nesta vida mortal, tenha a presunção de penetrar no mistério secreto da predestinação divina, a ponto de afirmar absolutamente que ele é do número dos predestinados, como se fosse certo que aquele que é justificado não pode pecar ou que, se pecar, pode prometer seguramente o seu arrependimento. A não ser por uma revelação especial ninguém pode conhecer os que Deus escolheu" [10]. "Anátema a quem disser que o homem regenerado e justificado tem o poder de crer que ele está no número dos predestinados" [11]. "Anátema a quem disser que a graça da predestinação não é concedida senão aos predestinados e que os outros são também certamente chamados, mas não Recebem a graça, visto que eles são predestinados para o mal pelo poder divino" [12].

O ensinamento conciliar de Trento pode ser resumido assim:

1° – a predestinação divina é uma verdade de Fé;
2° – ela é um mistério insondável, e ninguém neste mundo pode sem revelação saber com uma certeza infalível se está predestinado;
3° – pode haver verdadeiros justos que não são predestinados: essas almas receberam realmente a graça santificante e, se elas a perderam e não perseveraram, é unicamente por sua falta, e não por que Deus as devotou para o mal.

Que nos dia a razão teológica? A perfeição do Deus imutável, cuja ciência infinita e a causalidade universal descem a todos os pormenores, exige que Ele ordene e regule, desde toda a eternidade o que executará no tempo, porque ele deve realizar um dia pela sua graça a beatitude dos seus eleitos, ele a quis e a decretou de toda eternidade; ele a destinou anteriormente a tais e tais, e, ao mesmo tempo determinou os meios que a asseguram eficazmente a posse. "Ver este meio e este fim sobrenaturais preparar eficazmente o meio para o fim; é o que chamamos de predestinação. Na inteligência divina é a obra de uma profunda sabedoria; na vontade divina, a obra de uma misericórdia infinita, totalmente gratuita" [13].

[10] Sess., VI, cap. 12; DENZINGER, 805. 1540.
[11] Sess., VI, can. 15; DENZINGER, 825. 1565.
[12] Sess., VI, can. 17; DENZINGER, 827. 1367.
[13] P. MONSABRÉ. Conférences de Notre-Dame, 23a. Conf.

II – Os efeitos da predestinação

Chamamos de efeito da predestinação tudo aquilo que no plano divino e sob a direção de Deus deve realmente conduzir à glória.

Esses efeitos são de duas ordens: uns são diretos e imediatos, os outros, indiretos.

Os efeitos diretos são, por si mesmos, de ordem sobrenatural e devem levar o homem ao seu termo final. São aqueles já formulados pelo apóstolo Paulo [14].

Primeiramente, a vocação que começa a obra de vida e sem a qual nada poderá chegar a termo. Entendemos por vocação sejam as graças cristãs que solicitam a inteligência e a vontade, sejam os socorros exteriores, pregação, bons exemplos, e outros meios dos quais a Providência se serve para levar as almas à salvação. "Quos praedestinavit hos et vocavit" aos quais predestinou, a estes chamou.

Em segundo lugar. a justificação que nos torna filhos e herdeiros de Deus e permite aos adultos merecer a recompensa como uma espécie de conquista. A justificação compreende a graça santificante, nossa verdadeira deificação; o bom uso da graça que é um trabalho excelente na obra da salvação, como acentua S. Tomás [15]; a perseverança final, que conclui definitivamente o curso e que é chamada pelo Concílio de Trento [16] "magnum donum, o dom por excelência". "Et quos vocavit hos et justificavit", aos que Deus chamou, justificou-os.

Finalmente, a glorificação, porque a predestinação é, antes de tudo, a eficaz intenção da glória. Essa glorificação comporta a visão e o amor beatíficos, que são a recompensa essencial; as auréolas e as outras recompensas acidentais; e, após a Ressurreição, a glória inadmissível do corpo: "Quos autem justificavit illos et glorificavit"; aqueles que Deus justificou, glorificou-os.

[14] Rom., VIII, 28-30.
[15] S. TOMÁS, Comm. in Epist., ad Rom., VIII, 28-30.
[16] Sess., VI, cap. 16; DENZINGER, 826.1560.

Entende-se por efeito indiretos da predestinação um conjunto de fatos, de circunstâncias ou de realidades, que embora naturais, são ordenados pela Providência para o sobrenatural e, finalmente, à salvação: a saúde, as riquezas, a prosperidade, enquanto elas se fazem auxiliares da virtude e um meio de amor a Deus. A doença, os infortúnios, as desgraças de todas as espécies, enquanto são queridos ou permitidos por Deus, como uma ocasião de paciência e de mérito, de penitência mais generosa, de caridade mais ardente, etc., são efeitos da predestinação e procedem do Amor infinito.

Esta doutrina, tão bela quanto consoladora, não é invenção dos teólogos. Ela está contida na palavra tão significativa de S. Paulo: "Diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum" [17]. Para os que amam a Deus, todas as coisas concorrem para o bem, para este bem verdadeiro que é a salvação.

III – A reprovação. Os erros e a fé católica.

Atribui-se a Lucídio, padre gaulês do século V, ter ensinado que quem não foi escolhido para a vida eterna é forçado ao mal. Seja quem fosse esse Lucídio, que aliás se retratou [18], esses erros foram retomados, no século IX, por Gottescalk, monge da abadia de Orbais, e pouco a pouco condensados em um sistema, que foi chamado de o predestinacionalismo. Esse inovador admitia uma dupla predestinação: uma, dos eleitos ao repouso na glória; outra, dos reprovados, para a morte eterna. Todos aqueles que não foram escolhidos para o Bem, são forçados para para o mal, como os eleitos fazem o bem fatalmente [19].

[17] Rom., VIII, 28.
[18] Esta retratação está reproduzida em Bibl. Max., VIII. 525.
[19] Cf. SCHWANE. Histoire des dogmes, tom. V, ch. IV.

Wiclef, João Hus, Jerônimo de Praga, renovam essas blasfêmias, repetidas ainda por Lutero e Calvino. Lutero abribui a Deus a responsabilidade do pecado e do mérito. A doutrina de Calvino é ainda mais radical: os homens, diz ele, não são todos criados em condição igual, porque Deus predestina uns para a vida eterna, os outros, para a condenação eterna.

Os Jansenistas pretendem que Deus, depois da culpa original, não quer sinceramente a salvação de todos os homens, e que, Cristo não tendo morrido senão para os predestinados, os outros são abandonados e entregues à ruína. Apressemo-nos a opor a essas monstruosas teorias os ensinamentos da Igreja Católica. O concílio de Orange (529) declara: "Não somente nós não cremos que alguns homens sejam predestinados para o mal pelo poder divino, mas, se há espíritos que desejam acreditar em tão grande mal, nós lhes lançaremos o anátema com indignação" [20]. O concílio de Kiersy (853) diz paralelamente: "Deus conheceu pela sua presciência os que devem se perder, mas ele não os predestinou a se perderem. Porque Deus é justo, ele predestinou uma pena eterna para a sua falta" [21]. Mais explícito foi o concílio de Valença (855): "Nós confessamos firmemente a predestinação dos eleitos para a vida e a predestinação dos ímpios para a morte, mas com esta diferença: que na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, enquanto que na condenação dos que se perderam, o demérito precede o justo julgamento de Deus. Pela predestinação Deus somente decretou o que ele mesmo deve fazer por sua misericórdia ou por seu justo julgamento. Para os maus Deus previu a malícia deles, porque ela vem deles mesmos. Ele não a predestinou porque a malícia não vem dele. Quanto à pena, que segue as suas obras más, ele a previu e a predestinou, porque ele é justo e coloca sobre todas as coisas, segundo a observação de Sto. Agostinho, uma sentença tão irrevogável quanto certa é sua presciência. Com o concílio de Orange nós lançamos o anátema a todos os que disserem que alguns homens são predestinados para o mal pelo poder de Deus" [22].

[20] DENZINGER, 200. 397.
[21] DENZINGER, 316. 627.
[22] Can., 3; DENZINGER, 816. 1556.

Por fim, é necessário lembrar as definições do concílio de Trento: "O pecado não vem de Deus, pois são os próprios homens que tornam más as suas vias"
[23].

A doutrina católica se reduz aos seguintes pontos:

1- Há uma reprovação para os maus, quer dizer, um justo julgamento de Deus, que de toda a eternidade decreta que os indignos serão punidos por suas faltas. A Escritura não emprega a palavra reprovação, mas afirma a sua realidade em termos equivalentes: ela chama os reprovados de maus: "Ide malditos de meu Pai, para o fogo eterno" [24]; de filhos da perdição: "Aqueles que me destes, eu os guardei, e nenhum deles pereceu senão o filho da perdição" [25]; de vasos de cólera, destinados à ruína [26].

2 – A reprovação não é um ato que decreta o pecado, como a predestinação decreta o bem, mas somente um ato que pronuncia o castigo, por causa dos pecados que os homens cometerão por si mesmos e por sua malícia. Também Nosso Senhor dizendo aos reprovados: "Retirai-vos de mim malditos, ide para o fogo eterno", justifica a sua sentença: "Tive fome e não me destes de
comer…", etc.

3 – Na reprovação Deus não decreta a pena senão após ter previsto a falta, enquanto que na predestinação ele decide dar ao menos a graça de prever o mérito.

4° – Na predestinação Deus decide auxiliar os eleitos a se salvar. Na reprovação muito longe de querer ajudar os maus a se perderem, consente em lhes conceder todos os socorros necessários ao cumprimento do dever, e ainda se ocupa delas pela sua Providência comum e mesmo pela sua Providência sobrenatural geral, de modo que se eles se perdem, não é porque se lhes foi impossível serem bons, mas porque rejeitaram sê-lo: "Nec ipsos malos ideo perire quia boni esse non potuerunt, sed quia boni esse noluerunt" [27].

[23] Sess., VI, can. 6; DENZINGER, 816. 65.
[24] Mat., XXV, 41.
[25] Jo., XVII, 12.
[26] Rom., IX, 22.
[27] Conc. Valent., can. 2; DENZINGER, 321.

IV – A gratuidade da predestinação e a justiça da reprovação

O que é certo, o que é livremente discutido

Os Pelagianos, que negavam a necessidade da graça, destruíram, de um só golpe, o fundamento da predestinação ao sustentarem que o homem pode, sem a intervenção gratuita de Deus, alcançar a salvação. Os semi-Pelagianos admitiam a graça sobrenatural, mas pretendiam que todos podem somente pelas suas forças chegar ao começo da salvação e a se preparar para a primeira graça. Uma vez recebida a justificação teremos direito à perseverança final e consequentemente à glória que a coroa. Portanto, não há predestinação gratuita.

Todos os católicos estão de acordo sobre estes pontos fundamentais:

1° – A reprovação é um ato de perfeita justiça, porque ela pronuncia a pena unicamente para punir a falta, e após ter previsto essa falta.

2° – A glória não sendo concedida senão àqueles que fizeram o bem, ela é, em sentido muito verdadeiro, a recompensa do mérito e pode ser chamada segundo a linguagem de S. Paulo, uma coroa de justiça [28]. [28] II Tm 4,8.

3° – Mas, para merecer a glória, é necessário possuir a graça e, a primeira graça sendo inteiramente gratuita, disto se conclui que Deus, coroando nossos méritos, coroa os seus próprios dons. Expressão que gostavam de repetir os papas e os concílios, depois de Sto. Agostinho, que escreve: "É tão grande a bondade de Deus, diz o Papa Celestino I, que ele quer que os seus dons sejam os nossos méritos, para os quais será reservada a recompensa eterna" [29]. Segundo o concílio de Orange: "A coroa é devida às nossas boas obras, se estas se concretizam, mas a graça, que não é devida, precede para que aquelas possam ser concretizadas" [30].

4° – A predestinação, tomada no seu conjunto, para a preparação de todos os bens da salvação, desde a vocação até a glorificação, ou mesmo só para o apelo à graça, é inteiramente gratuita: porque é de fé que ninguém pode se preparar para a graça unicamente pelas suas energias [31].

O que é livremente discutido entre os teólogos católicos é o problema: a escolha divina que chama os predestinados para a glória será absolutamente gratuita ou será influenciada pela previsão dos méritos, no sentido de que Deus escolhe tais homens para a glória após ter previsto que eles aproveitarão a graça?

Em largos traços, vejamos as principais soluções desse problema: Eis, em primeiro lugar, a solução da escola tomista: Deus quer sinceramente a salvação de todos os homens, e ele não predestina ninguém para o pecado e para a condenação. Contudo, antes de toda previsão dos méritos do homem, só por sua bondade, ele escolhe tais e tais para a glória eterna. Em virtude desta escolha, ele lhes prepara os socorros e as glórias que os farão chegar infalivelmente, mas pela sua cooperação pessoal, à salvação e à beatitude: eis a predestinação. Paralelamente, antes de toda previsão dos atos humanos, Ele quer permitir que outros homens, por sua própria falta, não recusem chegar à glória e se condenem. Mas, também para estes, Deus prepara todas as graças necessárias para a salvação, de sorte que, se eles se perdem, não será por falta de graça, mas por falta de boa vontade. Eis então, a reprovação negativa. É somente após ter previsto que os homens abusando da graça e do livre-arbítrio se entregarão ao mal, que Deus decreta a puni-los. Eis, então, a reprovação positiva. Neste sistema verificam-se perfeitamente as palavras do concílio de Kiersy: "Que os homens sejam salvos, é dom de Deus; que alguns outros se perdem, é falta deles mesmos" [32].

[29] S. CELESTINO. Lettre aux Evêques des Gaules, cap. 12; DENZINGER, 184,381.

[30] Concílio de Orange, can. 18; DENZINGER, 191. 388.
[31] Cf. Concílio de Orange, can. 5, ss; Concílio de Trento, sess. VI, can. 3; DENZINGER, 178, ss. 813. – Ver os textos dos conc.de Kiersy e de Valência precedentemente citados, onde está dito que Deus predestina pela graça e salva pela misericórdia.
[32] DENZINGER, 317. 622.

Os molinistas puros rejeitam a reprovação negativa, e não admitem que a eleição dos predestinados seja em todos os pontos gratuita. Deus quer igualmente a salvação de todos os homens, embora não conceda a todos graças iguais. Ele prevê, por sua ciência média, que alguns homens cooperarão com a graça até o fim, e é por causa dessa previsão que os predestina para a glória. Deus prevê que outros farão o mal, e é por isso que eles os reprova. Os congruístas, com Suarez, Belarmino, etc., dizem: Deus prevê que se colocasse tais homens em tais circunstâncias favoráveis, eles cooperariam com a graça e se salvariam, e por isso ele os escolheu.

A eleição é gratuita neste sentido que Deus, independentemente da previsão dos méritos, predestina à glória e quer colocar tais pessoas em circunstâncias favoráveis; mas, por outro lado, a gratuidade não é absoluta, por que Deus sabe, por sua ciência média, e independente do seu decreto, que os homens se beneficiarão das graças oferecidas.

Nesta exposição em que nos colocamos ao abrigo de toda polêmica, não será o lugar de empreender a crítica dos diversos sistemas [33].
 
Apenas queremos lembrar que o molinismo e o congruísmo são perfeitamente livres na Igreja, e, se o tomismo tem para si o mistério, tem também consigoa lógica, que proclama a independência absoluta de Deus e a gratuidade das suas escolhas: mistério e lógica, os tomistas não temem nem um nem o outro, persuadidos de que a lógica leva à verdade, e o mistério, a Deus. Na prática, o cristão não tem que se preocupar com as teorias das escolas. O meio infalível para resolver o problema, é amor a Deus e seguir a sua Lei, segundo o mandamento de S. Pedro: "Esforçai-vos meus irmãos, de tornardes certas pelas vossas boas obras vossa vocação e vossa eleição" [34].

[33] Cf. Tractatus dogmatici, t. I, De Deo Uno, et t. II, de Gratia.
[34] II. Pe., I, 10. – Cf. Santo AGOSTINHO. De Praedestinatione sanctorum, P. L., XLIV, De dono perseverantiae, P. L., XLV; S. T., I, 23 e o comentário do Pe. PÈGUES. P. MONSABRÈ. Carême de 1876; Ed. HUGON. Hors de l'Eglise point de salut Paris, Téqui.

Eis, em primeiro lugar, a solução da escola tomista: Deus quer sinceramente a salvação de todos os homens, e Ele não predestina ninguém para o pecado e para a condenação. Contudo, antes de toda previsão dos méritos do homem, só por sua bondade, ele escolhe tais e tais para a glória eterna. Em virtude desta escolha, ele lhes prepara os socorros e as glórias que os farão chegar infalivelmente, mas pela sua cooperação pessoal, à salvação e à beatitude: eis a predestinação. Paralelamente, antes de toda previsão dos atos humanos, Ele quer permitir que outros homens, por sua própria falta, não recusem chegar à glória e se condenem. Mas, também para estes, Deus prepara todas as graças necessárias para a salvação, de sorte que, se eles se perdem, não será por falta de graça, mas por falta de boa vontade.

O meio infalível para resolver o problema, é amor a Deus e seguir a sua Lei, segundo o mandamento de S. Pedro: "Esforçai-vos meus irmãos, de tornardes certas pelas vossas boas obras vossa vocação e vossa eleição" [34].

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