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A confissão perfeita e a confissão sacrílega

Paramentos Litúrgicos

“A confissão bem feita é sacramento, a malfeita é sacrilégio; a confissão bem feita tira todos os pecados, a malfeita acrescenta mais um pecado; a confissão bem feita lança o demônio fora, a malfeita mete-o mais dentro. E se, cada dia, vos vemos mais entrados e mais penetrados do demônio, que fé quereis que tenhamos nas vossas confissões?”

O milagre deste dia representa o mistério da Confissão perfeita — o mudo fala depois da expulsão do demônio. Na parábola das bodas o pecador é condenado por não falar. Na parábola do filho pródigo, auto sacramental da confissão, o pecador é condenado antes de falar. As piores confissões, aquelas em que o mudo fala e o demônio fica, como no caso de Judas, a confissão das confissões será a matéria do presente sermão. Como a turba que presenciou o milagre, o autor se admira das confissões malfeitas.

Quando ou as cortes eram mais cristãs, ou os pregadores menos de corte, quando se fazia menos caso da graça dos ouvintes, para que eles só fizessem caso da graça de Deus, quando a doutrina que se tirava do Evangelho eram verdades sólidas e evangélicas, e não discursos vãos e inúteis, quando finalmente as vozes dos precursores de Cristo chamavam os pecadores ao Jordão e os levavam às fontes dos sacramentos, o argumento comum deste Evangelho e a matéria utilíssima deste dia era a confissão. Esta antiguidade determino desenterrar hoje, esta velhice determino pregar, e só me pesa que há de ser, ainda que eu não queira, com grande novidade.

O pecado tem muitas portas para entrar e uma só para sair, que é a confissão.

Pecar é abrir as portas ao demônio para que entre à alma; pecar e emudecer [NÃO SE CONFESSAR OU FAZER CONFISSÃO MAL FEITA, SACRÍLEGA], é abrir-lhe as portas para que entre, e cerrar-lhe a porta para que não possa sair. Isto é o que em alegoria comum temos hoje no Evangelho.

O pior estado desta vida, e o mais infeliz, de todos, é o pecado. Mas se neste extremo de mal pode haver ainda outro mal maior, é o de pecado, e mudo. O mais desventurado homem de que Cristo nos quis deixar um temeroso exemplo, foi aquele da parábola das bodas, a quem o rei, atado de pés e mãos, mandou lançar para sempre no cárcere das trevas. Orei era Deus, o cárcere o inferno, e o homem foi o mais desventurado de todos os homens, porque no dia e no lugar em que todos se salvaram, só ele se condenou.

E em que esteve a sua desgraça? Só em pecar? Não, porque muitos depois de pecar, se salvaram. Pois em que esteve? Em emudecer depois de pecar. Estranhou-lhe o rei o descomedimento de se assentar à sua mesa, e em tal dia, com vestido indecente, e ele em vez de solicitar o perdão da sua culpa confessando-a, confirmou a sua condenação emudecendo: At ille obimutuit (Mt. 22, 12): E ele, diz o evangelista, emudeceu. – Aqui esteve o remate da desgraça.

Na confissão, primeiro fala o mudo, e depois sai o demônio; primeiro se confessa o pecador, e depois se absolve o pecado.

Pecar é fazer naufrágio o navegante; pecar e emudecer; é ir-se com o peso ao fundo, e não lançar mão da tábua em que se pode salvar.

Mais mofino [infeliz] em emudecer que em pecar, porque cometido o pecado, tinha ainda o remédio da confissão, mas, emudecida a confissão, nenhum remédio lhe ficava ao pecado.

Pecar é enfermar mortalmente; pecar é emudecer, é cair na enfermidade, é renunciar o remédio. Pecar é fazer naufrágio o navegante; pecar e emudecer; é ir-se com o peso ao fundo, e não lançar mão da tábua em que se pode salvar. Pecar é apagarem-se as lâmpadas às virgens néscias; pecar e emudecer é apagar-se-lhes as a lâmpadas e fechar-se-lhes as portas. O pecado tem muitas portas para entrar e uma só para sair, que é a confissão. Pecar é abrir as portas ao demônio para que entre à alma; pecar e emudecer, é abrir-lhe as portas para que entre, e cerrar-lhe a porta para que não possa sair. Isto é o que em alegoria comum temos hoje no Evangelho. Um homem endemoninhado e mudo. Endemoninhado, porque abriu o homem as portas ao pecado; mudo, porque fechou o demônio a porta à confissão. E que fez Cristo neste caso? Maior caso ainda! Erat ejiciens daemonium (Lc. 11, 14). Não diz o evangelista que lançou Cristo o demônio fora, senão que o estava lançando. Achava Cristo repugnância, achava força, achava resistência, porque não há coisa que resista a Deus neste mundo senão um pecador mudo.

Tantas vozes de Deus aos ouvidos, e o pecador mudo? Tantos raios e tantas luzes aos olhos, e o pecador mudo? Tantas razões ao entendimento, tantos motivos à vontade, tantos exemplos e tão desastrados e tão repetidos à memória, e o pecador mudo? Que fez alfim Cristo? Aplicou a virtude de seu poder eficaz, bateu à porta; porque não bastou bater à porta, insistiu, apertou, venceu, saiu rendido o demônio, e falou o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est motus. – Este foi o fim da batalha, glorioso para Cristo, venturoso para o homem, afrontoso para o demônio, maravilhoso para os circunstantes, e só para o nosso intento parece que menos próprio e menos airoso. Diz que primeiro saiu o demônio, e depois falou o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est motus. E nesta circunstância, parece que se encontra a ordem do milagre com a essência do mistério. Na confissão, primeiro fala o mudo, e depois sai o demônio; primeiro se confessa o pecador, e depois se absolve o pecado. Logo, se neste milagre se representa o mistério da confissão, primeiro havia de falar o mudo, e depois havia de sair o demônio. Antes não, e por isso mesmo, porque aqui não só se representa a confissão, senão a confissão perfeita, e a confissão perfeita não é aquela em que primeiro se confessa o pecado, e depois se perdoa, senão aquela em que primeiro se perdoa, e depois se confessa.

A confissão menos perfeita começa pelos pés de Deus, e acaba pelos braços; a confissão perfeitíssima começa pelos braços e acaba pelos pés, como aconteceu ao [filho] pródigo. A razão é clara, porque a confissão perfeitíssima é aquela em que o pecador vai aos pés de Deus verdadeiramente contrito e arrependido de seus pecados.

Resolveu-se o pródigo a tornar para casa do pai e confessar sua culpa, e como bom penitente dispôs e ordenou primeiro a sua confissão: Ibo ad pairem meum, et dicam ei: Pater, peccavi in coelum, et coram te. [Irei buscar a meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de vós!.] Feita esta primeira diligência, pôs-se a caminho, e estando ainda muito longe: Cum adhuc longe esset, eis que subitamente se acha entre os braços do pai, apertando-o estreitamente neles, e chegando-o ao rosto com as maiores carícias: Accurrens cecidit super collum ejus, et osculatus est eum. – Então se lançou o pródigo a seus pés e fez a sua confissão como a trazia prevenida: Et dixit ei filius: Pater, peccavi in coelum et coram te. – Pois agora, filho pródigo? Não era isso o que vós tínheis ensaiado. Enfim temos a comédia turbada. O pai saiu cedo, o filho falou tarde. Perderam as figuras as deixas, erraram a história, trocaram o mistério. Esta história do pródigo não é a comédia ou o ato sacramental da confissão?

Sim.

Logo, primeiro havia o pródigo de lançar-se aos pés do pai e fazer o papel da sua confissão, como a trazia estudada, e depois havia o pai de lançar-lhe os braços, e restituí-lo à sua graça. Pois por que se troca toda a ordem, e primeiro lhe lança os braços o pai, e depois se confessa o filho? Porque representavam ambos não só o ato sacramental da confissão, senão da confissão perfeitíssima. Na confissão menos perfeita, primeiro se confessa o pecado, e depois se recebe a graça; na confissão perfeitíssima primeiro se recebe a graça, e depois se confessa o pecado. A confissão menos perfeita começa pelos pés de Deus, e acaba pelos braços; a confissão perfeitíssima começa pelos braços e acaba pelos pés, como aconteceu ao pródigo. A razão é clara, porque a confissão perfeitíssima é aquela em que o pecador vai aos pés de Deus verdadeiramente contrito e arrependido de seus pecados.

Vai verdadeiramente contrito e arrependido? Logo já vai em graça, já vai perdoado, já vai absolto. E esta é a confissão que hoje temos no milagre do Evangelho. Confissão em que primeiro se recebe a graça e depois se confessa o pecado; confissão em que primeiro sai o demônio, e depois fala o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus. Se não houvera no mundo mais modos de confissões que estes dois que tenho dito, não me ficava a mim para fazer hoje mais que seguir, como dizia, as pisadas dos nossos pregadores antepassados, e exortar à frequência deste sacramento e à confissão e arrependimento dos pecados.

Mas se me não engano, ainda há outro modo de confissão, e mui própria da corte. Deve ser como os trajos: confissão à la moda.

Dissemos que havia confissão em que primeiro sai o demônio e depois fala o mudo, e confissão em que primeiro fala o mudo e depois sai o demônio.

Ainda há mais confissão. E qual é?

Confissão em que o mudo fala e o demônio não sai; confissão em que o mudo fala e o demônio fica. Judas quer dizer confessio: confissão. E assim como no apostolado de Cristo houve um Judas traidor e outro Judas santo, assim há hoje na Igreja confissões santas e confissões traidoras. Judas, o traidor, não foi traidor mudo; antes a boca e a língua foi o principal instrumento de sua traição. Ave Rabbi; et osculatus est eum.[ Deus te salve, Mestre. E deu-lhe um ósculo (Mt. 26, 49).] Desta sorte são muitas das confissões que hoje vemos no mundo, e por isso eu há muito que me temo muito mais das confissões que dos pecados. É de fé que toda a verdadeira confissão causa graça na alma. Nunca houve tanta frequência de confissões como hoje; contudo vemos muito poucos efeitos da graça. Qual será a causa disto: tanta confissão e tão pouca graça? Eu não sei a causa que é, mas sei a causa que só pode ser. A causa que só pode ser é que são confissões em que falam os mudos, mas não saem os demônios. A confissão bem feita é sacramento, a malfeita é sacrilégio; a confissão bem feita tira todos os pecados, a malfeita acrescenta mais um pecado; a confissão bem feita lança o demônio fora, a malfeita mete-o mais dentro. E, se cada dia, vos vemos mais entrados e mais penetrados do demônio, que fé quereis que tenhamos nas vossas confissões? Ora, eu hoje hei de tratar da confissão como prometi. Mas, porque o remédio se deve aplicar conforme a chaga, não hei de tratar da confissão dos pecados, senão da confissão das confissões. Eis aqui a velhice e a novidade do assunto que trago hoje.

Não vos hei de exortar a que confesseis os pecados, senão a que confesseis as confissões. Os escrúpulos que a isto me movem irei discorrendo em um exame particular. Eu farei o exame, para que vós façais a confissão; eu serei o escrupuloso, para que vós sejais os confessados. Mas como a matéria é tanto das portas a dentro da alma, e poderia parecer temeridade, e querela julgar de fora, direi primeiro qual é a minha tenção em tudo o que disser. Este milagre do diabo mudo fez diferentes efeitos nos ânimos dos presentes.

Houve quem louvou, houve quem condenou, e houve quem admirou. Uma mulher devota louvou: Beatus venter qui te portavit. [Bem-aventurado o ventre que te trouxe (Lc. I I, 27)] Os escribas e fariseus condenaram: In Beelzebub, principe daemoniorum ejiciit daemonia.[ Ele expele os demônios em virtude de Belzebu (Lc.11,15)] As turbas, a gente do povo, admirou: Et admiratae sunt turbae. A estes últimos me hei de acostar hoje.

Não hei de ser dos que louvam, nem hei de ser dos que condenam; só hei de ser dos que admiram. As vossas confissões, vistas a uma luz, parece que têm que louvar; vistas a outra luz, parece que têm que condenar: eu nem as louvarei, nem as condenarei; somente me admirarei delas. Estas minhas admirações são as que haveis de ouvir. Não será o sermão admirável, mas será admirativo: Et admiratae sunt turbae.

 

 

 

 

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