A Igreja, a lei natural e as bênçãos a uniões homossexuais
Por Taiguara Fernandes. O novo documento vaticano Fiducia Supplicans impôs graves questões de consciência aos bispos, sacerdotes e fiéis. Longe de “não ter mudado nada”, o próprio debate intenso ocorrido nos últimos dias e as restrições que diversos bispos colocaram às práticas autorizadas pela declaração comprovam, por si mesmas, que Fiducia Supplicans mudou alguma coisa.
Essa ruptura também pode ser percebida através das notas da declaração, nas quais se encontram, exclusivamente, referências ao pontificado atual (com exceção de uma solitária e acidental citação a Bento XVI), sem que se possa apontar qualquer fundamento na doutrina dos Papas precedentes ou na tradição anterior, algo que seria minimamente razoável a um documento que “não mudou nada”.
Quando as questões de consciência levantadas por essas novidades parecem por demais complicadas, especialmente quanto à atitude prática que se deve tomar, é oportuno lembrar aquilo que é perene e imutável, portanto, sempre seguro. É o que recordamos nos pontos a seguir:
1) Existem “preceitos primários e essenciais que regem a vida moral” (Catecismo da Igreja Católica, 1955) pelos quais o homem pode “discernir, pela razão, o bem e o mal, a verdade e a mentira” (Catecismo da Igreja Católica, 1954). A esses preceitos, chamamos “lei natural”, pois decorrem da própria natureza das coisas, isto é, decorrem do que elas mesmas são;
2) Quanto a isso, a Igreja sempre reconheceu a existência dessas “leis universais e permanentes” que “obrigam a todos e cada um, sempre e em qualquer circunstância […] sem exceções” (João Paulo II, Encíclica Veritatis Splendor, 52);
3) Essa “lei natural é imutável e permanente através das variações da história” e não está sujeita a modificações pelo “fluxo das ideias e dos costumes” (Catecismo da Igreja Católica, 1958), isto é, não varia de acordo com modas ou ideologias de uma época;
4) Por causa disso, “toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei, mas sim corrupção da lei” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 95, a. 2). Nesse caso, “chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um ato de violência” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, q. 93, a. 3);
5) Assim, não existe poder humano capaz de derrogar lei natural, pois “a autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. […] Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder” (João XXIII, Encíclica Pacem in Terris, 51);
6) Isso também se aplica aos poderes eclesiásticos, pois “quem recebeu a ordem sagrada é capaz, segundo as normas do direito, do poder de governo” (Código de Direito Canônico, Cânon 129), já que a Igreja também está “constituída e ordenada neste mundo como sociedade” (Código de Direito Canônico, Cânon 204).
7) Quando uma lei iníqua for estabelecida, não é legítimo adotar uma atitude meramente positivista, acreditando que o simples fato de estabelecer-se a regra torna essa regra boa por si mesma, uma “escolha que obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções […] aceitando como único critério moral […] aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis”, realizando verdadeira “abdicação da própria consciência moral” (João Paulo II, Encíclica Evangelium Vitae, 69);
8) Isso quer dizer que “Leis desse tipo não só não criam obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave e precisa obrigação de opor-se a elas através da objeção de consciência” (João Paulo II, Encíclica Evangelium Vitae, 73).
9) Com efeito, se Código de Direito Canônico reconhece que “a ninguém é lícito coagir os homens a abraçar a fé católica contra a sua consciência” (Cânon 748, §2), muito menos seria lícito coagir alguém a abandonar a fé católica e os preceitos da lei natural contra a sua consciência, inclusive porque existe, do outro lado, a obrigação inversa e o direito correspondente de permanecer na fé, ambos de lei divina, pois “todos os homens estão obrigados a procurar a verdade no que concerne a Deus e à sua Igreja, e, uma vez conhecida, em virtude da lei divina têm obrigação e gozam do direito de a abraçar e observar” (Cânon 748, §1);
10) “Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico” (João XXIII, Encíclica Pacem in Terris, 61), ou seja, não obrigam a quem quer que seja;
11) E porque a lei natural possui um “caráter racional e, portanto, universalmente compreensível e comunicável” (João Paulo II, Encíclica Veritatis Splendor, 36) é possível extrair dela, para saber como agir concretamente, os “princípios gerais, a partir dos quais os operadores de reta consciência podem avaliar e resolver as situações em que possam eventualmente ser envolvidos na sua atividade” (Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Dignitas Personae, 34);
12) Entre esses princípios gerais, a Igreja destina “particular atenção aos princípios que não são negociáveis”, como o “reconhecimento e promoção da estrutura natural da família, como união entre um homem e uma mulher baseada no matrimônio, e a sua defesa das tentativas de a tornar juridicamente equivalente a formas de uniões que, na realidade, a danificam e contribuem para a sua desestabilização, obscurecendo o seu carácter particular e o seu papel social insubstituível” (Bento XVI, Discurso aos participantes no congresso promovido pelo Partido Popular Europeu, 30/03/2006);
À luz desses princípios, podemos perceber o seguinte:
I) Para além de eventuais frases corretas que a declaração Fiducia Supplicans possua, o centro do documento está no capítulo III, que textualmente fala em “bênçãos a casais de mesmo sexo” (o uso do termo “casal” aparece em todas as traduções oficiais: em italiano, coppie; em francês e inglês, couples; em espanhol, parejas).
A Igreja Católica sempre evitou o uso do termo “casal” para pessoas de mesmo sexo, preferindo adotar a descrição objetiva “união entre duas pessoas do mesmo sexo”, como o ocorre no documento de 2003, da própria Congregação para a Doutrina da Fé, Considerações sobre Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais (§6), ou na Declaração do Pontifício Conselho para a Família a respeito de uma Resolução do Parlamento da Europa do dia 16 de Março 2000, a qual pretendia considerar iguais à família as “uniones de facto”, incluídas as homossexuais. Como o termo “casal” necessariamente designa uma união entre homem e mulher, a utilização da expressão “casais de mesmo sexo” por Fiducia Supplicans é uma ruptura, pois estabelece uma analogia que “obscurece o caráter particular” da “união entre um homem e uma mulher baseada no matrimônio” (Bento XVI, loc. cit.).
De fato, o documento Considerações sobre Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas Homossexuais, da mesma Congregação para a Doutrina da Fé, veda “estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família” (§4). O uso textual do termo “casal” para designar a união entre duas pessoas do mesmo sexo é uma analogia direta, sequer remota, à união entre um homem e uma mulher, o que já demonstra uma ruptura entre Fiducia Supplicans e o ensinamento anterior.
Para além disso, quando se fala, textualmente, em “bênçãos a casais de mesmo sexo”, a ruptura torna-se ainda mais clara: duas pessoas, separadamente, não formam um casal, mas relacionadas, sim; logo, necessariamente se trata de uma bênção sobre a relação entre essas duas pessoas, no caso, uma união, que formaria o casal. Porém, nesse caso, o uso do termo “casal” é aplicado diretamente a pessoas de mesmo sexo, não à união de um homem e de uma mulher. É desse modo que Fiducia Supplicans afeta um dos “princípios que não são negociáveis” (Bento XVI, loc. cit.) e representa, mais do que uma ruptura, uma ofensa aos preceitos normativos da lei natural.
II) Em termos práticos, qualquer batizado, bispo, sacerdote ou leigo, está autorizado, por lei divina, isto é, tem o direito, e até mesmo o dever, de resistir a uma lei iníqua, no sentido expressado por Santo Tomás de Aquino, João XXIII e João Paulo II, entre muitos outros, e de não aceitar normas que contrariem a lei natural e a fé católica. Pode e deve fazê-lo para não abdicar de sua própria consciência, retamente ordenada para Deus e à verdade. Nesse sentido, sempre poderá recorrer à objeção de consciência para não agir contra a lei natural, nas situações em que não seja possível mudar aquela violação.
III) Quanto aos Bispos, especificamente, dotados de poder de governo e de ensino (Código de Direito Canônico, cânon 375), possuem o direito e, inclusive, a obrigação grave de alertar, evitar e impedir violações à lei natural, especialmente no território de suas dioceses. Possuem também o dever, decorrente do seu múnus, de resguardar as regras da lei natural contra normas de governo civil ou eclesiástico que as violem — normas que, por isso mesmo, “estão privadas de qualquer valor jurídico” (João XXIII, Encíclica Pacem in Terris, 61). Nesses casos, o Bispo não só pode resistir à violação como tem o poder de determinar o seu contrário, especialmente considerando os deveres da consciência para com a verdade.
Por essa razão, não deve surpreender a ação dos Bispos que, diante das graves questões de consciência impostas por Fiducia Supplicans, têm feito alertas e estabelecido restrições e normas próprias dentro de sua jurisdição. Sua ação está amparada na própria lei natural, o que já foi demonstrado.
Afinal, como disse São Pedro, o primeiro Papa da Igreja, “importa obedecer antes a Deus que aos homens” (Atos dos Apóstolos 5,29).
Taiguara Fernandes é advogado, jornalista e criador do curso “O Direito como ele é”, de introdução ao Direito com base na lei natural