ENTREVISTA: Padre Claude Barthe – uma análise sobre a eleição do Papa Francisco
O Padre Claude Barthe é o capelão da Peregrinação "Summorum Pontificum" em Roma e concedeu uma entrevista ao jornalista Olivier Figueras, que foi publicada pelo jornal francês "Présent".
A eleição do primeiro Papa de nome Francisco está sendo vista como uma grande mudança. Essa é também sua opinião?
– Fundamentalmente, não. Infelizmente, não. Eu quero dizer que o contexto dessa eleição é o de uma crise, sem nenhum precedente na história da Igreja.
Sem nenhum precedente da fé, da transmissão da fé, da catequese, crise que não cessa de crescer. Ela está ligada a um desmantelamento da liturgia romana que a reflete e a acentua. Ela se propaga, além disso, por uma secularização (e um apagamento) do clero e dos religiosos, e uma perda espantosa em todo mundo do sentido do pecado, que banaliza, em resumo, a secularização do ponto de vista moral. Falava-se antigamente de crentes não praticantes.Ora, hoje, na França e em um certo número de países do Ocidente, a prática se tornou residual e, além disso, os praticantes que restam estão longe de serem todos crentes. No resto do mundo, principalmente nos países onde o número de padres é grande e mesmo crescente, a alta da heterodoxia e da ausência da formação teológica é mais que angustiante. Essa tempestade que sacode a Igreja no seio da ultra-modernidade e de um mundo agressivamente secularizado reduz consideravelmente o acontecimento da eleição pontifical de 13 de março, aliás importante. Mas a realidade maciça permanece a mesma: o barco faz água por todos os lados, para citar o Papa precedente.
– Quem é o Papa Francisco?
– Ele nasceu em 1936 na Argentina, de uma família de imigrantes italianos (ele tem 76 anos, ou seja, em alguns meses a mesma idade que tinha João XXIII quando eleito Papa). Ele entrou nos jesuítas, foi provincial de sua ordem na Argentina, de 1973 a 1979. João Paulo II o nomeou bispo auxiliar de Buenos Aires em 1992, depois coadjutor (com direito de sucessão) em 1997. Ele se tornou arcebispo da capital da Argentina em 1998, cardeal em 2001 e verdadeiro chefe da Igreja da Argentina.
Mas, eu imagino que é seu perfil eclesiástico que você me pede. Formalmente, é um puro produto do molde inaciano, pelo menos do molde inaciano para superiores. O novo Papa é um homem de personalidade muito forte, tendo um poderoso sentido de autoridade. Já compararam sua personalidade com Pio XI mas, de minha parte, eu o compararia antes ao Cardeal Benelli, que dominou longo tempo a Cúria de Paulo VI.
Jesuita muito fiel a seus deveres, ele é um asceta, que levanta ao nascer do dia, faz todo dia uma hora de oração. Tendo uma enorme potência de trabalho, uma memória espantosa, uma inteligência sutil, ele tem uma notável capacidade de controle direto daquilo que ele comanda (praticamente nunca teve secretário particular). Dito isso, é mais difícil governar a Igreja universal do que a Igreja da Argentina, sobretudo aos 76 anos, vivendo desde a idade de 21 anos com praticamente um pulmão só, e estando em todo caso de fato cansado de uns anos para cá. Quanto a endireitar uma situação eclesial, que poderia fazê-lo hoje em dia? O Papa Francisco deixa uma diocese, aquela de Buenos Aires, afligida por uma grave crise de vocações e minada pela secularização, à imagem de tantas dioceses em terras que pertenceram antigamente à cristandade.
É um intelectual, um homem culto, e que sabe eminentemente vulgarizar: ele se esforça por falar com uma grande simplicidade; ele se obrigava mesmo, na Argentina, a expressões em gíria. Seus ataques repetidos contra uma religião diluída são muito consistentes. Isso quer dizer também que ele sabe perfeitamente se comunicar, exceto que seu caráter abrupto pode lhe pregar peças. Ele presta a maior atenção às nomeações que faz, como comprovou nos postos de responsabilidade que ele exerceu como provincial dos jesuítas e como primaz da Argentina, e “fazedor” de bispos desse país. Sua importância moral cresceu ainda após 2005, já que se soube rapidamente que ele se tinha beneficiado, por ocasião do conclave que elegeu Joseph Ratzinger, de todos os votos de “oposição” ao decano do Sagrado Colégio de então. Na Argentina, ele era considerado como quase Papa, aquele que o teria sido se, diante dele, não se tivesse encontrado o Prefeito do antigo Santo Ofício. Deve-se dizer também que salvo pela intensidade da vida espiritual, sua personalidade é muito diferente daquela do Papa precedente.
– É portanto um "progressista"?
– Não! O Cardeal Bergoglio não parecia com outro cardeal jesuíta de muito forte personalidade, o Cardeal Martini, que foi dado como papabile até que ele fosse atingido pelo Mal de Parkinson. Do mesmo modo que seria preciso compreender que o Papa Ratzinger não era um “tradicionalista”, mas um homem de “centro-direita” – perdoem-me essa nomenclatura bastante inadequada mas que tem a vantagem da rapidez – muito atento a todo tipo de reivindicações tradicionais que ele fazia suas em parte, sobretudo do ponto de vista litúrgico, é preciso entender bem que o novo Papa não é um “progressista”.
Por isso é preciso estudar um pouco seu perfil político e social. A Argentina é um país que foi marcado por um fenômeno político muito específico, o peronismo, do qual não sei se se pode fazer entrar pura e simplesmente na categoria dos populismos, tanto o leque de sensibilidades dos partidários de Juan Péron, que ia do fascismo a uma esquerda muito avançada, era grande. Jorge Mario Bergoglio era um peronista engajado de centro direita, um católico peronista, pode-se dizer. Ele foi membro desde o fim dos anos 1960 (quer dizer, mais ou menos na data de sua ordenação) de uma organização peronista chamada OUTG (Organização Única da Transferência Geracional), que não se engajava na luta armada, mas que se consagrava à formação de jovens líderes desse movimento extremamente social, ainda que radicalmente hostil ao marxismo. No fim de 1974, quando era provincial dos jesuítas há um ano, ele confiou o controle da Universidade Jesuíta del Salvador a antigos membros dessa organização, que acabava de ser dissolvida. Critica-se frequentemente a Jorge Mario Bergoglio seu apoio à junta militar que afastou Isabel Peron em 1976. É preciso compreender que ele foi daqueles que quiseram preservar a herança social do peronismo. A reformulação que ele operou em seguida de seu percurso em um livro de entrevistas famoso, El Jesuita, publicado em 2010, é evidentemente uma obra de circunstância, mas ela não é falsa na insistência que ele usa para afirmar que sua linha sempre foi a preocupação dos pobres, a organização em seu favor das estruturas sociais e a evangelização nesse sentido.
– Parece ter sido mal visto pelos governantes argentinos atuais que poderiam estar na origem da retomada das acusações sobre sua colaboração com o regime de Videla.
– De fato, sua atitude muito crítica diante do governo “burguês” dos Kirchner se dirigia ao mesmo tempo sobre a fraqueza da política social e sobre o questionamento do fundamento católico da Argentina (ver, por exemplo, seu livro Ponerse la patria al hombro, Tomar a pátria sobre os ombros, 2004) com tomadas de posição bem conhecidas contra o aborto e o casamento homossexual. Sua defesa da moral da família e da vida foi muito decidida. Poder-se-ia sonhar com uma revalorização da Humanae Vitae, encíclica muito esquecida hoje, e com uma catequese denunciando a contracepção? Suas declarações sobre a vida na Argentina foram mais nacional-católicas, pode-se dizer, que a dos bispos franceses, mas também mais tímidas quanto à presença nas manifestações. Poder-se-ia até mesmo sustentar que o Cardeal de Buenos Aires se tornou na Argentina uma potencia de inspiração alternativa de centro esquerda.
Assim, em todo esse percurso, pode-se dizer que ele passou do centro direita do peronismo ao centro esquerda do pessoal eclesiástico, onde o situam sua eleição “perdida” de 2005 e de suas afirmações em El Jesuita. Tudo isso explica sua atitude mais que reservada em relação à Teologia da Libertação, e por isso diante da tendência dos jesuítas que, sob o generalato do Padre Arrupe (1965-1985), apoiou mais ou menos essa teologia. Do mesmo modo que essa aceitava o marxismo, excetuado o ateísmo, Jorge Mario Bergoglio só aceitava da Teologia da Libertação que a “opção preferencial pelos pobres”. Jorge Mario Bergoglio participou na luta de João Paulo II e pelo Cardeal Ratzinger contra essa teologia enquanto marxistizante (com duas instruções da Congregação para a Doutrina da Fé sobre esse tema, de 1984 e 1986). Ele se tornou bispo por ocasião da reviravolta da tendência do episcopado da América Latina, graças a uma política de nomeações episcopais que foi selada pela Conferência geral do Episcopado latino americano em Santo Domingo, em 1992. Assim Jorge Mario Bergoglio se aproximou de prelados mais conservadores que ele, que trabalharam contra essa teologia na Argentina, Angelo Sodano, núncio no Chile e Leonardo Sandri, núncio na Venezuela e depois no México. Estes se tornaram em seguida personagens chave da Cúria wojtyliana e muito recentemente, atores decisivos de sua elevação ao trono de Pedro.
Para responder de outra maneira a sua questão anterior, poder-se-ia dizer que a eleição de Jorge Mario Bergoglio ao Sumo Pontificado é semelhante ao que seria a eleição de Andre Vingt-Trois, mas com afinidades mais “liberais” que as do Cardeal de Paris, como a proximidade com o Cardeal Hummes, que foi arcebispo de São Paulo e Prefeito da Congregação para o Clero, ou com o Cardeal Kasper.
– Pode-ser-ia dizer então que ele é "conciliar"?
– Seria ainda necessário especificar, pois o leque dos conciliares é aliás ainda maior do que o dos peronistas.
Conciliar e talvez mesmo ultra conciliar, o novo Papa o é, em matéria de ecumenismo e de relações com as religiões não cristãs, ou pelo menos com o judaísmo. Ele se interessa muito à colegialidade em todos os níveis. Para o resto, as novidades não o interessam muito. Ele não é, por exemplo, nem um pouco tentado pelas exegeses bíblicas neobultmannianas ou pelas eclesiologias heterodoxas de certos confrades jesuítas. Ele é aliás preservado disso pelo seu modo de funcionamento teológico muito simples. Sua teologia é espiritual e prática. É talvez aqui que vai aparecer uma dificuldade: é uma banalidade dizer que o último concílio produziu um enorme terremoto teológico, alguma coisa de muito indefinível que é preciso defender ativamente, ou ao menos assumir, ou então “interpretar” ou ainda ultrapassar. As duas últimas hipóteses parecem excluídas para ele, as duas primeiras implicam, em seu nível de responsabilidade, em poder “manter a rota”.
Evidentemente, o novo Papa responderá a um desejo de reativação da colegialidade episcopal reclamada por uma boa parte do episcopado. Mas esse é um dos paradoxos desta eleição, como observava Jean-Pierre Denis, de La Vie: os cardeais quiseram ao mesmo tempo uma reforma da Cúria – o que quer dizer concretamente uma retomada de um governo forte – e mais descentralização.
É um pouco contraditório. Na minha opinião, a anarquia intrínseca à situação posconciliar se encarregará de contrabalançar o que a autoridade romana, sendo “conciliar”, queira fazer de muito forte.
E a liturgia? E o Motu Proprio? E a Fraternidade São Pio X?
– É preciso ver. É mais que evidente que o novo Papa tem uma sensibilidade litúrgica muito diferente daquela do Papa precedente. Antes da abertura do Conclave, nos últimos dias, eu segui com atenção um jornal italiano chamado Il Fatto Quottidiano, que in extremis, torpedeava o papabile delfim de Bento XVI, Angelo Scola, Arcebispo de Milão. Aliás, esse jornal publicou um artigo sobre o tema: “Os cardeais não querem de modo algum um papa lefebvrista”. É preciso entender esse adjetivo à italiana: favorável a um “retorno” litúrgico. Em outras palavras, a “reforma da reforma” vinda do alto, aquela do Papa vai estacionar. Resta a “reforma da reforma” vinda da base, dinamizada pelas celebrações de missas tradicionais, que podem ser entravadas, mas que é impossível de sufocar, como se podia fazer nos “anos de chumbo”.
Além disso, o novo Papa é um político inteligente, pragmático em suas alianças, complexo, secreto, e que gosta de surpreender. A Missa de Entronização prova isso. Como de resto ele não tem, no momento, oposição séria pela direita (essa é uma das lições desse surpreendente conclave: o ratzinguerismo puro, que já tinha mostrado uma grande fraqueza, como que evaporou), ele pode se permitir gestos em direção do mundo tradicional em sentido largo: aqule dos padres identitários, as comunidades conservadoras, um mundo que pesa na Itália, na França, nos Estados Unidos e em outros lugares. Será que ele pode sentir o descompasso entre os altos responsáveis eclesiásticos e a expectativa daquilo que se chamou o “novo catolicismo”?
É notório que o arcebispo de Buenos Aires aplicou o Summorum Pontificum na Argentina como o “aplicaram” a maioria dos bispos franceses… Bastaria aliás deixar as coisas como estão para que o caráter teoricamente obrigatório do Motu Proprio submerja num profundo sono. Mas há os jovens padres, as vocações de espírito tradicional, as comunidades Ecclesia Dei, a expectativa de toda uma ala de fiéis de paróquia, em suma, um conjunto de ingredientes com os quais o Papa Francisco, que os conhece mal, vai provavelmente negociar, sem dúvida por meio de pessoas interpostas.
A FSSPX? Sua passividade para negociar e se instalar “dentro” desde junho último é conveniente para ela, talvez, mas prejudica enormemente a Igreja hoje. Como quer que seja, o tempo das intermináveis negociações certamente acabou. Você pode me dizer que, se voltam as excomunhões, isso vai mudar pouca coisa. Que a FSSPX seja “fora” enquanto os padres revoltados austríacos estejam “dentro”, tira todo efeito às sanções. Tanto mais que, como a “reforma da reforma” de que falávamos, se posso dizer, a integração da FSSPX em uma sociedade eclesial cada vez mais fraca pode também se fazer na base.
Minhas previsões são prudentes, como você vê.
– Talvez, por outro lado, o senhor tenha "luzes" sobre a maneira com que se produziou essa eleição, que pegou todo mundo de surpresa?
– Ninguém tinha previsto isso entre os analistas e comentaristas. Então, o que aconteceu? Se acreditarmos nos jornais mais bem informados, e se tomarmos as confidências indiretas dos cardeais, parece que, desde o primeiro escrutínio, os partidários do Cardeal Scola, o candidato com o melhor currículo entre os papabili da continuidade ratzingueriana, constataram que ele estava bem abaixo dos cerca de quarenta votos de partida que eles esperavam. Terão se reportado ao Cardeal Erdò, de Budapeste? Logo saberemos. Mas, por outro lado, viu-se que os promotores curiais de uma candidatura “de mudança”, entre outros os Cardeais Sodano, Sandri, Re, a “velha Cúria”, como se diz, aliados ao Cardeal Bertone, tinham trocado a candidatura do Cardeal Scherer, de São Paulo por aquela bem mais eficiente do Cardeal Bergoglio e que se uniram a eles, entre outros, os cardeais americanos. O segredo tinha sido cuidadosamente guardado. O golpe teatral tem algumas semelhanças com aquele de outubro de 1962, nos primeiros dias do Concílio Vaticano II. Do mesmo modo que, na época, a Cúria pacelliana desmoronou como por um sopro, também sumiram, oito anos de “restauração” ratzingueriana. Em todo caso, no Sacro Colégio. Note bem que certo número de promotores da eleição do novo Papa sabem muito bem que ele não lhes servirá de instrumento. Eles fazem lembrar do Príncipe Salina, do Guepardo , que salva o que aquilo que pode dos ganhos, fazendo o papel do fogo: “Para que tudo fique como antes, é preciso que tudo mude”.
Tudo muda? Verdadeiro ou falso, isso foi sentido, vivido e explicado assim em campo, principalmente pela mídia, que só destacam das coisas da Igreja aquilo que lhes convém. Para continuar a metáfora com o Vaticano II, poder-se-ia dizer que houve o Concílio e o “espírito do Concílio”, que amplificou o movimento inovador, há o risco de vermos o Papa Francisco e o “espírito do Papa Francisco”, que vai tentar amplificar a evolução.
– Então o senhor é otimista ou pessimista?
– Eu não tenho que ser nem um nem outro, como se eu me colocasse acima disso. Bem entendido, eu não escondo que eu lamento o fato de que a época precedente parece se fechar como um parêntese. Mas eu não acredito de nenhum modo que estamos voltando aos anos mais “conciliares” do ponto de vista litúrgico, do espírito do clero, estc. E depois, uma vez mais, a “purificação”, aquela das contas do IOR, o bando vaticano, ou aquela das rocambolescas histórias de “vazamentos” não é o verdadeiro problema. O verdadeiro problema, colossal, é o da situação do catolicismo, cinquenta anos depois do Vaticano II: ela é catastrófica. E portanto, mesmo se todos os bispos do mundo abandonassem carro e motorista e tomassem o metro ou a bicicleta, isso não mudaria nada disso.
Mas no fundo, a vítima do que acaba de acontecer poderia bem ser a “hermenêutica da continuidade”. Ora, pode-se observar que a tentativa à qual presidia Joseph Ratzinger desde o “Colóquio sobre a Fé” de 1985, embora permitindo profundos questionamentos muito promissores, tinha também o inconveniente do bloqueio sobre uma linha conservadora. Bom, agora, nós nos encontramos diante do Concílio, em pessoa. Nós nos encontramos diante da reforma litúrgica, com ou sem “abusos”, pouco importa, sem véu, diante da reforma litúrgica pura e simples. E a verdadeira discussão pode continuar sobre os pontos que apresentam dificuldades, educadamente, é verdade, mas diretamente. Você vê, ainda uma vez, vão me acusar de ser muito otimista…
O Padre Barthe é o capelão da Peregrinação "Summorum Pontificum" em Roma. Esta entrevista foi publicada pelo jornal francês "Présent", concedida a Olivier Figueras. Fonte: Revue Item via Tradinews e Montfort.