O VATICANO II PELOS SEUS PRÓPRIOS TURIFERÁRIOS: CONCÍLIO “PASTORAL” – POR RAPHAEL DE LA TRINITÉ
Eis as palavras de Schillebeeckx à revista holandesa ‘De Bazuin’ no. 16, 1965, tais como foram reproduzidas por Romano Amerio: ‘Nós o exprimimos uma maneira diplomática, mas depois do Concílio, tiraremos as conclusões implícitas‘ [‘Nous l’exprimons d’une façon diplomatique, mais, après le Concile nous tirerons les conclusions implicites‘].
(Apud Romano Amerio, Iota Unum, pag.93. Riccardo Ricciardi Editore. Milano – Napoli).
Também René Laurentin destacou essa ambiguidade fundamental dos textos do Concílio Vaticano II:
“Elucidar o papel do sucessor de Pedro na ordem da certeza e da verdade, eis um problema ‘pastoral’… [nota: Não é aqui o lugar para discutir a palavra ‘pastoral’ que foi o título-programa de nossa contribuição: ‘Reflexão pastoral’. Mantemo-nos distantes com relação às ambiguidades desta palavra. Ela foi, no Concílio, uma espécie de cavalo de Tróia. Os líderes das duas tendências, majoritária e minoritária, fizeram de conta que a pastoral era um domínio adequadamente distinto da doutrina. Assim, os primeiros fizeram passar, sob a cobertura desta palavra inocente, toda uma renovação teológica, infelizmente muito mal ajustada a um sistema doutrinal que em aparência permanecia intacto. Estamos longe, ainda hoje, de sair desta ambiguidade inerente aos textos do Vaticano II. Toda teologia é pastoral; e toda pastoral autêntica é teológica]”. (Fonte: R. Laurentin, O Fundamento de Pedro na Incerteza Atual, in Concilium – Revista Internacional de Teologia, n. 83, 1973/3: Dogma, p. 354).
Portanto, o caráter “pastoral” do Vaticano II foi o cavalo de Tróia que, pela brecha da ambiguidade, permitiu a penetração de doutrinas erradas na cidadela da Igreja.
Afirma categoricamente o Padre Libânio[1] que lê o Concílio Vaticano II segundo a “hermenêutica da ruptura”, com relação à doutrina de sempre da Igreja.
Essas duas leituras ou hermenêuticas mencionadas do Vaticano II tiveram raiz no fato de que o Papa Paulo VI, querendo votações maciças a favor dos documentos conciliares, tornou-se necessário escrever textos ambíguos, susceptíveis de dupla interpretação, a fim de captar os votos dos Bispos conservadores, que manifestavam susto ou resistência ao que era proposto no Concílio:
“Paulo VI optara para que os textos conciliares só fossem aprovados com larga maioria. Não queria, de modo nenhum, dar a entender que havia facções antagônicas e que os documentos significavam a vitória de uma sobre a outra. Deviam manifestar para a Igreja e para o mundo que nasciam de uma comunhão de corações e mentes. Essa opção está na base dos compromissos linguísticos e permitiu que, depois do Concílio, houvesse interpretações diferenciadas, apoiadas na literalidade do texto”. (J.B. Libânio, conferência citada, p.30).
“Concílio de consenso e compromissos — entre uma maioria que se construiu lentamente em defesa da abertura à modernidade e que estruturou, praticamente, os documentos e de uma minoria cada vez mais resistente que vincou, o máximo que pôde, o texto com pegadas pré-modernas” (J.B. Libânio, conferência citada, p.30).
Foi isto que causou a profunda divisão entre os próprios defensores do Concílio Vaticano II. Logo surgiram os defensores da “letra do Vaticano II”, e os defensores do “espírito do Vaticano II”.
Por tudo isso, é que Padre Libânio diz:
“O Concílio é mais que seus documentos. Ele é uma ‘intencionalidade’. Esta é, antes de tudo, uma intuição, uma percepção global, uma evidência co-natural, um espírito. Funciona como coluna vertebral dos textos. Oferece a chave hermenêutica mais importante.
Contudo, está em tensão com o texto. De um lado, ela manifesta-se nos textos, emerge deles, justifica-se e explicita-se neles. De outro, não se esgota neles nem consegue moldá-los todos à sua imagem e semelhança, já que os escritores não são um Deus criador. Por isso, encontram-se textos que a negam e justificam outra posição hermenêutica. Nesse caso, trava-se a batalha sobre a intencionalidade fundamental. É exatamente isso que estamos vivendo no momento atual. A intencionalidade, que se impusera na hermenêutica da maioria, nos anos imediatos ao pós-concílio, vem sendo considerada, atualmente, por largos setores eclesiásticos, como uma falsa leitura do Concílio. E, voltando aos textos, encontram outra intencionalidade — apresentam-na como sendo a autêntica leitura dos textos conciliares”. (J.B. Libânio, conferência citada, p.23). Ainda:
“Destarte, permanece para a atual Igreja a tarefa de prosseguir o movimento, iniciado no Concílio, de diálogo aberto e crítico com a modernidade, transformando um espírito em história, uma intencionalidade em práxis, desejos e opções na verdade dos fatos. Aí joga o futuro do Concílio. Em termos teológicos, o Concílio é um fato passado. A sua recepção decide sobre sua validez e força histórica. Em outros termos, o Concílio como evento terminou. Como espírito prossegue. O Vaticano II é, sobretudo, um Concílio.
Distingue-se, muito mais, pelo novo espírito, do que propriamente pelas novas explicitações da doutrina cristã” (J.B. Libânio, conferência citada . pp.31-32).
Padre Libânio, faz uma síntese histórica da preparação do Vaticano II e de seu desenvolvimento, sob a ótica de um seguidor do “espírito do Concílio”.
Ele não oculta as origens modernistas do Vaticano II e sua filiação ao movimento neo-modernista denominado Nova Teologia, sem lembrar, porém, que a Nova Teologia do Padre Henri de Lubac, do Pe. Daniélou e do Pe. Urs von Balthasar —foi condenada pela encíclica Humani Generis.
Ele mostra que o Vaticano II teve um posicionamento diferente daquele que a Igreja adotara até então.
Monsenhor Walter Brandmüller escreveu que o Vaticano II não promulgou e nem deliberou nada de modo definitivo. Portanto, o Vaticano II não exerceu o Magistério Ordinário de modo infalível:
“O Vaticano II, por sua vez, não julgou, não promulgou leis, nem mesmo deliberou de modo definitivo sobre questões de fé. Antes, o Vaticano II realizou um novo tipo de Concílio: um Concílio ‘pastoral’, que pretendeu aproximar o Evangelho do mundo de hoje. Em particular, não proclamou condenações doutrinárias, como salientou João XXIII no discurso de abertura: “A Igreja sempre se opôs às heresias; muitas vezes as condenou com a máxima firmeza”, ao passo que, hoje, ‘a Igreja prefere fazer uso do remédio da graça’, porque crê que esta corresponda às exigências da época atual, preferindo mais demonstrar a validade das suas doutrinas que estabelecer condenações”. Mas, à luz dos desenvolvimentos históricos, o Vaticano II ter-se-ia revelado previdente se, nas pegadas de Pio XII, tivesse tido a coragem de condenar expressamente o comunismo.
Pelo contrário, o temor de pronunciar condenações doutrinárias e definições dogmáticas foi tal, que afinal os textos conciliares se tornaram diversos entre si. Assim, por exemplo, a constituição dogmática “Lumen Gentium”, sobre a Igreja e a “Dei Verbum” sobre a revelação divina têm o caráter e a natureza de documentos doutrinários, mas sem definições vinculantes, enquanto que, segundo o canonista Klaus Mörsdorf, a declaração “Dignitatis Humanae”, sobre a liberdade religiosa, “toma posições sem um conteúdo normativo evidente”. Os textos do Vaticano II possuem, portanto, um grau muito diverso de obrigatoriedade, e também este é um elemento novo na história dos Concílios”. (Mons.Walter Brandmüller, O Vaticano II na história dos Concílios, artigo in“Avvenire” de 29 de novembro de 2006.)
“Confrontaram-se duas teologias básicas. De um lado, teologia dogmatista, na afirmação clara das verdades abstratas, universais, imutáveis e, de outro, a teologia hermenêutica que pretende interpretar para o mundo de hoje a revelação de Deus. Esse choque se deu especialmente a propósito da discussão sobre as Fontes da Revelação e, de modo especial, sobre a Escritura.
Deslocou-se de uma interpretação .especular, a modo de espelho, da Escritura, da Tradição, dos dogmas, da verdade, em geral, para uma interpretação histórico existencial” (J.B. Libânio, Conferência citada, p. 21).
O Concílio Vaticano II reinterpretou as verdades da Fé, e, exatamente por isso, errou. As verdades da Fé não podem ser reinterpretadas. O que Deus nos revelou, é verdade eternamente. Reinterpretando as verdades de fé, o Vaticano II abriu o caminho para o evolucionismo doutrinário, portanto, para o relativismo.
Certamente “pastoral” foi o nome do cavalo de Troia que introduziu na Igreja, triunfantes, os erros do Modernismo condenados por São Pio X na Pascendi e no Decreto Lamentabili, assim como os erros do Liberalismo condenados por Pio IX, no Syllabus, e os da Nova Teologia, condenados por Pio XII na Humani Generis.
Os modernistas eram contra a formulação de dogmas. Eles não poderiam — e não queriam — fazer um Concílio dogmático. Seria uma contradição por parte deles. O Concílio devia ser “pastoral”, dando instruções, orientações sem nada definir dogmaticamente.
E o próprio Paulo VI, em discurso pronunciado em janeiro de 1966, logo depois de encerrado o Concílio Vaticano II, respondeu, ele mesmo, qual era a autoridade com a qual se pronunciara o Concílio, e como os fiéis deveriam acatá-lo. Disse Paulo VI:
“Há quem pergunte que autoridade, que qualificação teológica o Concílio quer atribuir aos seus ensinamentos, pois bem se sabe que ele evitou dar solenes definições dogmáticas envolventes da infalibilidade do Magistério Eclesiástico. A resposta é conhecida, se nos lembrarmos da declaração conciliar de 6 de Março de 1964, confirmada a 16 de novembro desse mesmo ano (…). Dado o caráter Pastoral do Concílio, evitou este proclamar em forma extraordinária [ex cathedra] dogmas, dotados da nota de infalibilidade.
Todavia, conferiu a seus ensinamentos a autoridade do Supremo Magistério da Igreja” (Apud Compêndio do Vaticano II, editora Vozes, Petrópolis, p. 31). [Destaques nossos] A autoridade insuspeita de Paulo VI dirime qualquer dúvida sobre o caráter não infalível — portanto, falível — do Vaticano II.
Trata-se, portanto, de Magistério Ordinário da Igreja, mas falível, não exigindo adesão de fé divina e católica, e até podendo ou não ter erros. Lembramos que o Magistério Ordinário só obriga gravemente quando ensina pontos de doutrina ou de moral, de modo constante e universal, repetindo um Papa o que os anteriores ensinaram por longo período, e dependendo do modo como, nesse magistério, o Papa exprime seu desejo de definir.
Quando se trata, “ao contrário, de ensinamentos que não são propostos nem com esta universalidade, nem com esta constância, soluções a problemas recentes que a Igreja ainda não generalizou, e nos quais mais precisamente, ela não entende engajar plenamente sua autoridade prudencial, nós diremos que o Magistério não os propõe senão de modo falível” (Cardeal Journet, L`Église du Verbe Incarné, Desclée de Brouwer, Friburgo, 1955, vol.,. I, p. 456).
Nesses casos, “sem ter direito a uma fé divina ou infalível [os ensinamentos pontifícios não dados expressamente como infalíveis] merecem sempre uma fé humana, e uma fé humana certa, tanto quanto não seja evidente, e ele o será raramente, que a Igreja se enganou de fato. É esta fé humana concedida aos ensinamentos não infalíveis da Igreja, e chamada em nossos dias de assentimento piedoso, que se deveria batizar pelo nome de fé eclesiástica, do mesmo modo que chamamos de lei eclesiástica as leis humanas e variáveis da Igreja, para distingui-las das leis verdadeiramente divinas e imutáveis” (F. Marin-Sola, L’Évolution homogène du dogme catholique, t. I, p.429 cf. p. 479, e p. 493, nota 1). Nós distinguimos, portanto, duas espécies de assentimento: a fé divina e a fé eclesiástica ou assentimento piedoso. Alguns distinguem três: a fé divina, a fé eclesiástica ou mediatamente divina, o piedoso assentimento. Nesta divisão tripartite, a categoria intermediária deve ser, segundo nós, reduzida à primeira categoria” (Cardeal Journet, L Église du Verbe Incarné, Desclée de Brouwer Friburgo, 1955, I, p. 454, nota 2.).
Portanto, segundo o Cardeal Journet [1], aos ensinamentos não infalíveis deve-se dar apenas uma fé eclesiástica.
Também a Comissão Teológica do Concílio Vaticano II, tratando da autoridade dos pronunciamentos conciliares declarou em 16 -XI – 1964:
“Tendo em conta a praxe conciliar e o fim pastoral do presente Concílio, este sagrado Concílio só define aquelas coisas relativas à fé e aos costumes que abertamente declarar como de fé. Tudo o mais que o Sagrado Concílio propõe, como doutrina do Supremo Magistério da Igreja, devem-no os fiéis receber e interpretar segundo a mente do mesmo Concílio, a qual se deduz quer do assunto em questão, quer do modo de dizer, segundo as normas de interpretação teológica“. (Compêndio do Vaticano II, ed. Vozes, Petrópolis 1969, p. 21-22).
Ora, a Comissão Teológica do Concílio Vaticano II não declarou nada do que disse o Concílio como sendo de fé. Logo, no Vaticano II nada há de infalível que exija adesão de fé divina e católica.
Diz Padre Libânio:
“O sentido mais profundo do Concílio Vaticano II não foi o brindar à Igreja um texto terminado, mas criar novo espírito, nova mentalidade, introduzindo no interior da Igreja, a dimensão histórica, hermenêutica dialética. Ater-se à materialidade de seus textos é contradizê-lo, é desconhecê-lo”.
Tolerância, diálogo, respeito à pluralidade de opiniões, liberdade de expressão são princípios decorrentes do relativismo, e que negam a existência da Verdade objetiva e imutável, que a Igreja recebeu de Cristo, e que tem a obrigação de ensinar, condenado os erros opostos à verdade revelada.
Outro teólogo modernista — e, por isso, insuspeito de ser contrário ao Vaticano II —, o Padre René Laurentin, confessou que o Vaticano II intencionalmente foi ambíguo ao redigir os seus textos:
“Aqui e acolá — [no Vaticano II] — cultivava-se a ambiguidade como uma escapatória para oposições inextricáveis. Poder-se-ia dar uma longa lista de termos que incluem as tendências opostas, porque podiam ser vistos por ambos os lados, como jogos fotográficos nos quais se veem dois personagens diferentes na mesma imagem conforme o ângulo em que se olhe. Por essa razão, o Vaticano II suscitou, e continuará suscitando muitas controvérsias” (Padre René Laurentin, L´Enjeu et le Bilan du Concile, Seuil, Paris, 1966, p. 357, apud Padre Dominique Bourmaud Cien Años de Modernismo, Ediciones Fundación San Pio X, Buenos Aires, 2006, p. 344).
Por Raphael de La Trinité