ENTREVISTA JEAN-MARIE GUÉNOIS: “Papa Francisco é autoritário, genioso e não tem medo de ninguém”
O discurso à Cúria testemunha a desconfiança do Papa em relação à monarquia pontifícia, a instalação na Casa Santa Marta também e, no entanto, ele mostra uma autoridade implacável, incomparável com a de seus predecessores. Como explicar esse paradoxo?
Há um paradoxo entre a fachada democrática deste pontificado e a força de seu pulso. Francisco quer dar mais poder aos bispos e às conferências episcopais, ele recusa o título de “Papa” para privilegiar o de “Bispo de Roma”, mas muitos, na Cúria, falando de sua autoridade evocam seu “autoritarismo”… Outro paradoxo: o Papa quer uma gestão colegiada da Igreja Católica, transformando o Sínodo dos Bispos em uma espécie de assembleia permanente consultiva e constituinte. Mas toda reforma da Cúria resulta na concentração do poder executivo – que era o apanágio do Secretário de Estado, uma espécie de primeiro ministro – nas mãos… unicamente do Papa. Esta é uma reforma que já está estabelecida. É preciso recuar longe na História da Igreja para encontrar uma igual concentração. Entende-se hoje porque, em 2005, o Cardeal Martini, por ocasião do Conclave que elegeu Bento XVI não apoiou seu confrade jesuíta Bergoglio, que era, no entanto, o oponente do Cardeal Ratzinger. Eles partilhavam o mesmo programa reformista, uma espécie de Concílio Vaticano III progressista em ato, mas o Arcebispo de Buenos Aires não tinha boa reputação na Companhia de Jesus. Ele era conhecido por seu caráter sombrio e autoritário que lhe tinha valido um longo afastamento quando ele era encarregado do governo de uma província jesuíta. Este Papa é um patrão. Ele é genioso. Além disso, sua popularidade mundial é tamanha que ele não tem medo de ninguém.
Como as conferências episcopais (Polônia, África, Ásia, Estados Unidos) fora da Europa acolhem essas reformas futuras?
É preciso perceber, especialmente na França, que muitas das Conferências Episcopais – sempre marcadas por um engajamento principalmente progressista em matéria eclesiástica e de centro-esquerda em política – se alegraram com as reformas trazidas pelo Papa Francisco. Assim, o primeiro bispo que ele nomeou, e que é seu teólogo de referência (junto com o cardeal Kasper), D. Victor Manuel Fernandez, Reitor da Universidade Católica de Buenos Aires, confidenciou recentemente em um livro entrevista publicado na Itália que a tendência progressista teve de suportar “em silêncio” os longos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI. De onde vem a surpresa desse teólogo ao ver alguns se oporem ao Papa Francisco. D. Fernandez os qualifica publicamente de “fanáticos”. Esse radicalismo do grupo próximo do Papa, explícito no Sínodo, no entanto, provocou uma reação que Francisco não podia prever: desprezados publicamente pelo cardeal Kasper, os bispos africanos se rebelaram; podados por Francisco, os bispos dos Estados Unidos também. Resultado: as Conferências Episcopais dos Bispos africanos e dos Estados Unidos elegeram para o próximo Sínodo representantes claramente opostos às reformas da família. Os poloneses fizeram a mesma coisa. Ao mesmo tempo, a Conferência Episcopal Francesa – que foi muito discreta com relação às eleições dos seus representantes em Lourdes em novembro último – rejeitou as candidaturas de bispos que se oporiam às intenções reformistas do Papa. Idem na Alemanha. Mesmo se alguns Episcopados se revoltam, portanto, contra as reformas familiares de Francisco, o jogo não está ganho, já que a corrente progressista que tem os cabelos brancos ainda domina a gerência da Igreja Católica. Ela está muitas vezes nos postos chave do episcopado. D. Jean-Luc Brunin, bispo do Havre famoso pela ação social e o modernismo doutrinário – grande opositor desde o princípio da Manif pour Tous – não somente foi reeleito por seus pares ao comando da Comissão Episcopal encarregada das questões da família, mas será também um dos Padres Sinodais em Roma em outubro próximo para decidir o futuro da família em toda a Igreja Católica…
A geração João Paulo II, depois Bento XVI que foi construída sobre uma antropologia moral muito exigente ficou desestabilizada pelo rumo tomado pelo Sínodo?
É obvio que a geração João Paulo II e Bento XVI, clero ou leigos, está num profundo embaraço. O mal-estar é evidente agora. Muito engajada, esta geração está dividida em razão de sua lealdade, sua fidelidade ao Papa e sua fé, muito profunda, na Igreja Católica – e não se fala muito disso, pois a Igreja não é uma organização de correntes políticas, mas uma associação de crentes – e de seus engajamentos sociais. Zomba-se tão facilmente das famílias numerosas católicas com seus “catomóveis” e seus looks conservadores e perfeitos, dignos da simpática caricatura de um filme tipo “a vida é um longo rio tranquilo”. Os católicos são os primeiros a se divertirem com isso e manejam como todo mundo a autodepreciação e o humor.
Mas Francisco conhece mal a situação concreta dos católicos na Europa e nos Estados Unidos. Ele não parece perceber que as famílias mais numerosas que a média tem certamente ares burgueses – e algumas realmente o são, mas elas não são mais assim por mimetismo social. A aparência correta delas vem de uma conversão profunda motivada pelos apelos à “santidade” de João Paulo II e de Bento XVI. Elas também não são as famílias ricas de Buenos Aires com muitos motoristas de uniforme se não um piloto de helicóptero da família!
Na Europa e nos Estados Unidos, as famílias católicas ditas ricas deixam de sê-lo quando elas se tornam numerosas. Muitos bispos franceses, por exemplo – enquanto essa prevenção antifamília católica não existe em outros episcopados – parecem, por pura ideologia, como cegos diante dessa realidade social. No lugar de encara-la de frente, eles veem somente hábitos burgueses ou suspeitam de uma vontade de reprodução social, enquanto na verdade se encontra nelas uma verdadeira generosidade e um pesado sacrifício de abertura à vida…
É muito duro, portanto, para essa geração de famílias cristãs constatar que a Igreja Católica que deveria parabenizá-las e apoiá-las – o que muitos padres e bispos o fazem de modo admirável – não as reconhece pelo que elas são de verdade e não em caricatura. Elas se sentem como desprezados, catalogados, como não sendo talvez “verdadeiros” cristãos por não serem militantes da opção preferencial pelos pobres…
Ora os pobres são frequentemente eles mesmos, considerado o único salário pelo número de pessoas sustentadas… Por outro lado, as associações humanitárias católicas sabem muito bem que muitos dos donativos vêm dessas famílias. Há um autêntico engajamento cristão nessas famílias que são, além disso – e não por acaso – as principais provedoras de vocações religiosas
Não é preciso portanto que uma forma de injustiça ideológica seja exacerbada por certos caciques do pontificado para perseguir as gerações João Paulo II e Bento XVI que formam as forças vivas da Igreja da França e que sobretudo não precisam ser desencorajadas agora.
Os rumores de assassinato são fundados?
Os rumores de assassinatos são sempre possíveis para um homem público como o papa. E como todos, o Papa Francisco não está a salvo de desequilibrados. Mas como todos os rumores, eles são persistentes e nunca verificados. Ora, parece que esse rumor que faz do Papa um alvo da máfia foi lançado em 2013 por um magistrado italiano, especialista da Máfia, enquanto fazia a propaganda do seu último livro! Foi ele que lançou o boato que foi um marketing excelente para suas vendas, mas que se baseia na sua imaginação, porque a Máfia ou as máfias não têm o menor interesse em matar esse Papa.
Afirmar como sugeriu esse juiz que a reforma do banco do Vaticano poderia por em risco os interesses da Máfia é um completo absurdo, porque foi Bento XVI quem fez o grosso desse trabalho! É o que se chama de pura armação, da qual os italianos são ávidos. É sedutor, mas falso. E absurdo quando se conhece os detalhes e os problemas ainda em suspenso dessa reforma bancária complexa e praticamente acabada, no sentido de uma transparência draconiana. Por outro lado, foi o próprio Francisco que em três ocasiões desde sua eleição deixou claro que ele seguiria o exemplo de Bento XVI. Eu estou certo portanto que ele renunciará num futuro relativamente próximo pois ele acaba de fazer 78 anos, mas não antes de terminar as reformas de fundo que ele quer levar adiante na Igreja Católica porque ele se sente como que investido de uma missão. Eu sou com certeza um dos raros jornalistas que o colocou no trio da frente, às vésperas de sua eleição mas esta última era bastante imprevisível, como eu expliquei no meu livro.
Pode-se dizer que o Papa Francisco prepara sua sucessão pelas nomeações?
É o centro da questão do próximo consistório de fevereiro, onde Francisco vai nomear uns quinze cardeais. Esse será, além disso, o primeiro consistório desse Papa. Suas primeiras nomeações cardinalícias próprias. Elas serão conhecidas nas próximas duas semanas. É preciso perceber que o discurso de 22 de dezembro preparava de fato os espíritos. Esse Papa não quer mais se sentir obrigado a nomear Cardeais os chefes dos dicastérios romanos (os ministérios do Vaticano). Esse tempo passou e esse consistório deve demonstrar isso com eloquência. O Papa, como ele fez nos Estados Unidos, nomeando para a prestigiosa sé de Chicago, o mais progressista dos bispos americanos, relegado até então à uma minúscula diocese, vai procurar pelo mundo bispos pastores do campo e não príncipes. O que trará portanto consequências para sua sucessão e para a Igreja. A menos que a poção que ele inflige à Igreja seja tão forte que o corpo cardinalício não o siga mais…
Nós vamos comemorar os dois anos da renúncia de Bento XVI, o que sobrou de seu pontificado?
É uma questão muito difícil de responder porque quem é capaz de ter discernimento? A olhos humanos – é também uma tese que eu desenvolvo no meu livro – Bento XVI “fracassou” na sua sucessão. Eu sei que o termo choca; é trivial, poder-se-ia dizer que ele não fez seu sucessor. Mas eu o mantenho, não por causa desse Papa, mas por realismo, porque a eleição de Francisco é um incrível acontecimento eclesiástico. Bento XVI, de uma eminente altura intelectual e espiritual nunca foi um “político” nem um patrão como Francisco. Ele refletiu maduramente sobre sua renúncia, mas ele deixou – e isso se diga em sua honra – sua sucessão nas mãos da “Providência”. Ela existe na fé católica, mas ela é largamente assistida pelos cardiais os quais ela também assiste.
Mas o que a ala progressista não tinha conseguido em 2005 – principalmente porque o cardeal Martini não tinha apoiado a eleição do cardeal Bergoglio e porque o cardeal Lopez Trujillo tinha organizado em paralelo um grande consenso conservador em volta do cardeal Ratzinger – funcionou perfeitamente em 2013. Para resumir, a ala conservadora se “perdeu no caminho”. Os progressistas – liderados pelos cardeais Hummes e Danneels – retomaram o projeto Bergoglio de 2005. O cardeal Schola, arcebispo de Milão, que Bento XVI tinha privilegiado, não obteve o consenso de todos os seus colegas italianos. O escândalo do Vatileaks tinha indisposto os cardeais estrangeiros contra uma candidatura italiana. O caminho estava portanto livre para o cardeal Bergoglio. Com três vantagens: ele era velho, ele tinha o caráter para ter sucesso na reforma da Cúria e um sopro missionário para a evangelização.
Mas seu programa para a Igreja era menos conhecido. Agora ele o é para todo mundo. A questão é a aplicação do Concílio Vaticano II. Parece nos fatos que Francisco se opõe, quase ponto a ponto à prioridade antropológica e moral do Pontificado de João Paulo II e à reafirmação doutrinária, à reforma litúrgica, ao centralismo romano e à reafirmação do papado de Bento XVI. É como se esses dois Papas, depois do Concílio Vaticano II, tivessem trabalhado em um sentido para reencontrar a letra do Concílio e que o terceiro Papa apagasse isso para reencontrar o famoso “espírito do Concílio”, tão combatido pelos seus dois predecessores.
O legado do pontificado de Bento XVI e de João Paulo II é a fecundidade incrível que eles semearam nos corações de tantos católicos que são hoje firmemente engajados. Mas estes deverão afrontar um clima eclesiástico que remonta à dificuldade dos combates dos anos 70, que se acreditava extintos. Se for feita uma análise estritamente política, se poderia falar de uma verdadeira alternância, pois é a oposição aos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI – basta olhar os Conselhos e a “equipe” desse Papa – que está agora no poder! É tão incrível que muitos tem dificuldade de acreditar, mas é assim. Quem disse que os desígnios da “Providência” são impenetráveis.
Fonte: Le Figaro
Vincent Tremolet de Villers