Homilia do Papa Francisco na missa de abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Família
O Papa Francisco inaugurou neste domingo (4), a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo, cujo tema é a família, com uma missa solene na Basílica de São Pedro. A partir desta segunda-feira (5), os padres sinodais vão debater “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”.
Apresentamos a seguir a íntegra da homilia pronunciada pelo Papa Francisco:
«Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós» (1 Jo 4, 12).
As Leituras bíblicas deste Domingo parecem escolhidas de propósito para o evento de graça que a Igreja está a viver, ou seja, a Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos que tem por tema a família e é inaugurada com esta celebração eucarística.
Aquelas estão centradas em três argumentos: o drama da solidão, o amor entre homem-mulher e a família.
A solidão
Como lemos na primeira Leitura, Adão vivia no Paraíso, impunha os nomes às outras criaturas, exercendo um domínio que demonstra a sua indiscutível e incomparável superioridade, e contudo sentia-se só, porque «não encontrou auxiliar semelhante a ele» (Gn 2, 20) e sentia a solidão.
A solidão, o drama que ainda hoje aflige muitos homens e mulheres. Penso nos idosos abandonados até pelos seus entes queridos e pelos próprios filhos; nos viúvos e nas viúvas; em tantos homens e mulheres, deixados pela sua esposa e pelo seu marido; em muitas pessoas que se sentem realmente sozinhas, não compreendidas nem escutadas; nos migrantes e prófugos que escapam de guerras e perseguições; e em tantos jovens vítimas da cultura do consumismo, do «usa e joga fora» e da cultura do descarte.
Hoje vive-se o paradoxo dum mundo globalizado onde vemos tantas habitações de luxo e arranha-céus, mas o calor da casa e da família é cada vez menor; muitos projectos ambiciosos, mas pouco tempo para viver aquilo que foi realizado; muitos meios sofisticados de diversão, mas há um vazio cada vez mais profundo no coração; tantos prazeres, mas pouco amor; tanta liberdade, mas pouca autonomia… Aumenta cada vez mais o número das pessoas que se sentem sozinhas, e também daquelas que se fecham no egoísmo, na melancolia, na violência destrutiva e na escravidão do prazer e do deus-dinheiro.
Em certo sentido, hoje vivemos a mesma experiência de Adão: tanto poder acompanhado por tanta solidão e vulnerabilidade; e ícone disso mesmo é a família. Verifica-se cada vez menos seriedade em levar por diante uma relação sólida e fecunda de amor: na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na boa e na má sorte. Cada vez mais o amor duradouro, fiel, consciencioso, estável, fecundo é objecto de zombaria e olhado como se fosse uma antiguidade. Parece que as sociedades mais avançadas sejam precisamente aquelas que têm a taxa mais baixa de natalidade e a taxa maior de abortos, de divórcios, de suicídios e de poluição ambiental e social.
O amor entre homem e mulher
Ainda na primeira Leitura, lemos que o coração de Deus, ao ver a solidão de Adão, ficou como que entristecido e disse: «Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele» (Gn 2, 18). Estas palavras demonstram que nada torna tão feliz o coração do homem como um coração que lhe seja semelhante, lhe corresponda, o ame e tire da solidão e de sentir-se só. Demonstram também que Deus não criou o ser humano para viver na tristeza ou para estar sozinho, mas para a felicidade, para partilhar o seu caminho com outra pessoa que lhe seja complementar; para viver a experiência maravilhosa do amor, isto é, amar e ser amado; e para ver o seu amor fecundo nos filhos, como diz o salmo que foi proclamado hoje (cf. Sal 128).
Tal é o sonho de Deus para a sua dilecta criatura: vê-la realizada na união de amor entre homem e mulher; feliz no caminho comum, fecunda na doação recíproca. É o mesmo desígnio que Jesus, no Evangelho de hoje, resume com estas palavras:
«Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só» (Mc 10, 6-8; cf. Gn 1, 27; 2, 24).
Jesus, perante a pergunta retórica que Lhe puseram (provavelmente como uma cilada, para fazê-Lo sem mais aparecer odioso à multidão que O seguia e que praticava o divórcio, como uma realidade consolidada e intangível), responde de maneira franca e inesperada: leva tudo de volta à origem, à origem da criação, para nos ensinar que Deus abençoa o amor humano, é Ele que une os corações de um homem e de uma mulher que se amam e liga-os na unidade e na indissolubilidade. Isto significa que o objetivo da vida conjugal não é apenas viver juntos para sempre, mas amar-se para sempre. Jesus restabelece assim a ordem originária e originadora.
A família
«Pois bem. O que Deus uniu não o separe o homem» (Mc 10, 9). É uma exortação aos crentes para superar toda a forma de individualismo e de legalismo, que se esconde num egoísmo mesquinho e no medo de aderir ao significado autêntico do casal e da sexualidade humana no projecto de Deus.
Com efeito, só à luz da loucura da gratuidade do amor pascal de Jesus é que aparecerá compreensível a loucura da gratuidade dum amor conjugal único e usque ad mortem.
Para Deus, o matrimónio não é utopia da adolescência, mas um sonho sem o qual a sua criatura estará condenada à solidão. De facto, o medo de aderir a este projecto paralisa o coração humano.
Paradoxalmente, também o homem de hoje – que muitas vezes ridiculariza este desígnio – continua atraído e fascinado por todo o amor autêntico, por todo o amor sólido, por todo o amor fecundo, por todo o amor fiel e perpétuo. Vemo-lo ir atrás dos amores temporários, mas sonha com o amor autêntico; corre atrás dos prazeres carnais, mas deseja a doação total.
De facto, «agora que provámos plenamente as promessas da liberdade ilimitada, começamos de novo a compreender a expressão “a tristeza deste mundo”. Os prazeres proibidos perderam o seu fascínio, logo que deixaram de ser proibidos. Mesmo quando são levados ao extremo e repetidos ao infinito, aparecem insípidos, porque são coisas finitas, e nós, ao contrário, temos sede de infinito» (Joseph Ratzinger, Auf Christus schauen. Einübung in Glaube, Hoffnung, Liebe, Friburgo 1989, p. 73).
Neste contexto social e matrimonial bastante difícil, a Igreja é chamada a viver a sua missão na fidelidade, na verdade e na caridade. A Igreja é chamada a viver a sua missão na fidelidade ao seu Mestre como voz que grita no deserto, para defender o amor fiel e encorajar as inúmeras famílias que vivem o seu matrimónio como um espaço onde se manifesta o amor divino; para defender a sacralidade da vida, de toda a vida; para defender a unidade e a indissolubilidade do vínculo conjugal como sinal da graça de Deus e da capacidade que o homem tem de amar seriamente.
A Igreja é chamada a viver a sua missão na verdade que não se altera segundo as modas passageiras ou as opiniões dominantes. A verdade que protege o homem e a humanidade das tentações da auto-referencialidade e de transformar o amor fecundo em egoísmo estéril, a união fiel em ligações temporárias. «Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade» (Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, 3).
E a Igreja é chamada a viver a sua missão na caridade que não aponta o dedo para julgar os outros, mas – fiel à sua natureza de mãe – sente-se no dever de procurar e cuidar dos casais feridos com o óleo da aceitação e da misericórdia; de ser «hospital de campanha», com as portas abertas para acolher todo aquele que bate pedindo ajuda e apoio; e mais, de sair do próprio redil ao encontro dos outros com amor verdadeiro, para caminhar com a humanidade ferida, para a integrar e conduzir à fonte de salvação.
Uma Igreja que ensina e defende os valores fundamentais, sem esquecer que «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» (Mc 2, 27); e sem esquecer que Jesus disse também: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mc 2, 17). Uma Igreja que educa para o amor autêntico, capaz de tirar da solidão, sem esquecer a sua missão de bom samaritano da humanidade ferida.
Recordo São João Paulo II, quando dizia: «O erro e o mal devem sempre ser condenados e combatidos; mas o homem que cai ou que erra deve ser compreendido e amado. (…) Devemos amar o nosso tempo e ajudar o homem do nosso tempo» [Discurso à Ação Católica Italiana, 30 de Dezembro de 1978: Insegnamenti (1978), 450]. E a Igreja deve procurá-lo, acolhê-lo e acompanhá-lo, porque uma Igreja com as portas fechadas atraiçoa-se a si mesma e à sua missão e, em vez de ser ponte, torna-se uma barreira:
«De fato, tanto o que santifica, como os que são santificados, provêm todos de um só; razão pela qual não se envergonha de lhes chamar irmãos» (Heb 2, 11).
Com este espírito, peçamos ao Senhor que nos acompanhe no Sínodo e guie a sua Igreja pela intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria e de São José, seu castíssimo esposo.