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O DESEJO DO SER HUMANO DE SABER SOBRE O FUTURO – PADRE ANTONIO VIEIRA

Paramentos Litúrgicos

Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria é da curiosidade humana a sua matéria. 

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade.   Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.

A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado.

Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do Demônio? Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália?

O de Hércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.

Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite? Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das futuras.

No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.

Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes, em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos vivos.

A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro. Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.

Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele: Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber que se prognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque os achem, senão que vão sempre após eles, porque os amam.

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